“Houve um agravamento muito grande da dor crónica”

Cerca de um terço dos adultos em Portugal tem dor crónica. É esta a prevalência para que apontam os estudos mais recentes, a justificar uma maior atenção dos cuidados de saúde primários (CSP). Afinal, como salienta o coordenador do MGF.dor – Grupo de Estudos de Dor da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Raul Marques Pereira, a dor é uma das queixas mais frequentes nos CSP.

 

“E sabemos que há dificuldade em dar resposta”, comenta, atribuindo essa dificuldade, em parte, a défices existentes a nível do ensino, dado que, embora já existam cadeiras nos cursos de Medicina, “a dor ainda não é muito falada”. O que – alerta – “cria dificuldades mais à frente, pois os médicos não estão assim tão preparados para tratar a dor, especialmente a dor crónica, que tem as suas particularidades”.  “São situações que acabam por consumidor muitos recursos – muitas consultas, muito trabalho do médico a nível terapêutico”, realça.

Foi a identificação desta realidade que conduziu à criação do MGF.dor: “O intuito é dar aos médicos de família ferramentas validadas para que possam tratar a dor o melhor possível”. O especialista chama a atenção que, embora a dor seja transversal a todas as áreas da Medicina, em cuidados primários tem as suas particularidades, nomeadamente o facto de contactarem com os doentes numa fase muito inicial dos processos dolorosos crónicos.  Daí a importância de ferramentas como o manual de exame físico em dor, que está em preparação: dirigido a todos os médicos, visa especialmente os médicos de família.

Responsável pela criação da primeira consulta de dor do país, na USF Lethes, Raul Marques Pereira propõe-se aproveitar a experiência acumulada desde 2015 para, através do grupo, a transpor o universo dos cuidados primários: “A nossa ideia seria que isto fosse abraçado pelo ecossistema de saúde, porque acreditamos que tem mesmo resultados em saúde”, declara.

A propósito de resultados, concretiza que a aplicação de escalas para medição da dor mostrou que, no contexto da consulta, cerca de 70% dos doentes apresenta melhorias significativas nos índices de dor crónica: “É um número muito interessante, na medida em que acabamos por apanhar doentes muito cedo”, comenta, advertindo, porém, que este valor não pode ser comparado com o das consultas hospitalares, a que os doentes chegam em fim de linha no que toca à dor. Além disso, é avaliada a satisfação dos doentes: “E ficam satisfeitos, porque a maior parte sente-se pouca acompanhada no sistema. A satisfação é a nível psicológico e de qualidade de vida”.

O próximo passo – e que também envolve uma medição – é tentar que a consulta de dor reduza o absentismo na pessoa ativa. “Se pegarmos na lombalgia, que é a dor crónica mais comum, será que os doentes que faltam ao trabalho 20, 30, 40 dias por ano, se tiverem uma abordagem mais robusta, vão faltar menos? Nós, pensamos que sim”. Nesse sentido, já foi desenvolvido um protocolo, havendo agora que colocá-lo em prática. Raul Marques Pereira não tem dúvidas de que será mais um ganho, quer em saúde, quer para o sistema e para a sociedade, pois os custos do absentismo devido a dor “são brutais”. Esse passo irá reforçar o papel da consulta de dor nos cuidados primários: “Está mais do que provado que, para os doentes, é bom. As nossas métricas são favoráveis à existência de uma consulta”.

O especialista reconhece que, no que toca à dor, existe uma componente de subjetividade. Mas o intuito da aplicação destas métricas é precisamente transforma-la ao máximo em objetividade: “Temos de mostrar que, se aplicarmos a escala certa àquele doente, vamos perceber como a dor dele evolui. É um trabalho de educação que tem de ser feito, embora demore o seu tempo”. Acrescenta à subjetividade um outro problema, “muito português”: o sofrimento, o fado. “As pessoas pensam mesmo que não têm alternativa, que têm de aguentar”, comenta.

Mas a experiência em Ponte de Lima dá-lhe sinais positivos: “As pessoas sentem a melhoria e começam a dizer ao amigo e ao vizinho e há este passa-palavra, nem é preciso publicitar. As pessoas é que pedem para ir à consulta.”

Sabe que “não se mudam hábitos num ano ou dois”, mas acredita que, mostrando que a consulta funciona e estando ao lado dos doentes, a dor passará a ser mais valorizada. A ideia – destaca – é que os doentes não tenham de ir a uma urgência por causa da dor ou por causa da agudização da dor. E que todos os médicos estejam capacitados. “O caminho é fazer com a consulta de dor o que se fez com a consulta de hipertensão”. E, “num mundo ideal”, conseguir travar a progressão da dor para dor crónica, evitando consultas hospitalares, de modo a que a dor crónica afetasse um nicho de doentes e não os atuais 37% de portugueses. Um número “insustentável para qualquer sistema de saúde”. Basta atentar na despesa com o consumo de fármacos e nos custos associados ao absentismo, estimados em 2% do PIB. “Se gastássemos um bocadinho deste dinheiro a testar o modelo faria a diferença. Se cada médico dedicasse uma hora por semana também faria a diferença”, enfatiza.

Há todo um paradigma que é preciso mudar. A dor crónica é uma doença por direito próprio, independentemente da patologia de base, sendo reconhecida, como tal, por todas as associações internacionais.

O último ano veio agravar o cenário. Na consulta de dor na USF Lethes foi desenvolvido um protocolo de teleconsulta que permitiu continuar a acompanhar os doentes. “Correu bem, porque o protocolo é robusto; tanto é que conseguimos publicá-lo numa revista internacional”. Ainda assim, Raul Marques Pereira aponta para um agravamento global da dor: “Não fosse este acompanhamento tão estreito e os doentes teriam piorado muito, devido ao contexto de isolamento, de falta de atividade física, de falta de contacto com o médico”.

“Não tenho dúvidas de que vamos ouvir falar muito de quadros de dor e de síndromes dolorosos pós-covid, os quais vão condicionar muito a incapacidade dos doentes no futuro”, afirma, defendendo que, esta fase, se deviam estar a fazer mais consultas, a ver mais doentes. “Ou 2021 é um ano de mudança no sentido da patologia da dor crónica ou vamos pagar muito caro”, alerta.

“Foi um imponderável, demos o nosso melhor, mas temos de direcionar muitos recursos para aqui, porque a maior parte dos doentes piorou. Temos de assumir que houve um agravamento muito grande da dor crónica, por falta de rastreios, por falta de exames. Já devíamos estar a pensar em 2022. Temos de fazer um plano a dois ou três anos porque, senão, daqui a dez anos, temo que vamos ser um país diferente”, argumenta.

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.