Inês Espiga Macedo e Ana Iva Santos: anemia nos CSP
DATA
01/02/2023 09:20:53
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Jornal Médico
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Inês Espiga Macedo e Ana Iva Santos: anemia nos CSP

No âmbito do ANEMIA 2022, a reunião promovida pelo Anemia Working Group Portugal, decorreu a sessão “Desafio da Anemia nos Cuidados de Saúde Primários”, sob a moderação de Aurora Belo e Rui Costa. Partilharam o palco desta sessão Ana Iva Santos e Inês Espiga Macedo, ambas especialistas em Medicina Geral e Familiar (MGF) na Unidade de Saúde Familiar (USF) São João, no Porto, palestrantes que deram nota de tópicos-chave da experiência no diagnóstico e tratamento de casos clínicos. Saiba mais na edição 138 do Jornal Médico. 

Primeiro caso clínico

“Nos cuidados de saúde primários deparamo-nos diariamente com vários desafios, porque nem sempre temos canais de acesso rápido aos cuidados de saúde secundários e a quem devemos referenciar, e nem sempre conseguimos prestar cuidados de excelência que gostaríamos e que os utentes merecem”, admitiu Inês Espiga Macedo no início desta sessão. A tradução dos desafios apontados seria desenvolvida em três clínicos apresentados pelas duas especialistas. No primeiro, foi descrito um doente acompanhado por Ana Iva Santos, com os seguintes dados a realçar: 

  • Idade: 78 anos;
  • Diagnosticado com diabetes tipo II desde 2006, para a qual era medicado com metformina;
  • Doença cardíaca isquémica sem angina desde 2009;
  • Dislipidemia desde 2009;
  • Hipertensão arterial desde 2011;
  • Anemia ligeira desde 2013 (hemoglobina=12,9 g/dl; htc=39,5% e eritrócitos = 4,43x1012/l);
  • Depressão desde 2015;
  • Doença arterial periférica desde 2017, para a qual era medicado com aspirina;
  • Doença de Parkinson desde 2018;
  • Patologia osteoarticular degenerativa desde 2018.

Na consulta a 1 de setembro de 2022, o doente apresentou queixas de cansaço, dispneias para médios esforços e edemas distais bilaterais até ao tornozelo, tendo o exame objetivo exposto as crepitações bibasais e edemas maleolares. O exame analítico indicou:

  • IMC = 20 kg/m2, 
  • VGM = 93 fL;
  • Pressão arterial 110/60 mmHg;
  • Frequência cardíaca de 62 bpm, 
  • Hemoglobina = 10,8 g/l;
  • Transferrina = 262 µg/dl; 
  • Ferritina = 33 ng/ml;
  • Ferro = 91 µg/ dl; 
  • Vitamina B12 = 262 pg/ml, 

Recuando no registo histórico até à consulta de diabetes em dezembro de 2015, Ana Iva Santos relatou que “o doente foi diagnosticado e tratado para a depressão com sertralina 50 mg e, analiticamente, revelava uma anemia normocítica-normocrómica(hemoglobina=12,1 g/l). O doente voltou à consulta com o médico de família em janeiro de 2016, com os mesmos valores de hemoglobina (12,1g/dl) e, apesar da cinética do ferro se encontrar dentro dos valores considerados normais (ferritina=193,7ng/ml, ferro=103µg/dl), foi detetado défice de ácido fólico (2,6 ng/ml), pelo que começou a fazer suplementação desta vitamina”.

Ao exame com colonoscopia/endoscopia foram revelados dois pólipos e uma gastropatia atrófica/congestiva com algum grau de inflamação que podia comprometer a absorção das vitaminas. 

Após uns meses a fazer suplementação de ácido fólico, voltou à consulta em junho de 2016, com valores de hemoglobina melhorados (12,8 g/dl). Contudo, em 2019 foi de novo consultado, apresentando uma ligeira redução da hemoglobina (11 g/dl), além de marcadores de inflamação aumentados (velocidade de sedimentação = 76 mm/h e PCR=11,82 mg/dl), o que apontou para uma doença inflamatória crónica. 

“Assim”, conforme notou Inês Espiga Macedo, “como fatores de risco para anemia foram identificados a idade, a diabetes mellitus tipo II, a depressão, a medicação com ácido acetilsalicílico e metformina e o PSOF 11”.

“Face a este quadro, levanta-se a questão de saber interpretar os valores analíticos e usar adequadamente os algoritmos terapêuticos”, sublinhou a especialista.

Reportando à última consulta, em setembro de 2021, Ana Iva Santos assinalou que “o doente também apresentava queixas compatíveis com insuficiência cardíaca, o que motivou o pedido de exame ecocardigráfico e análise aos valores de NP-proBNP e a prescrição de furosemida para reduzir a congestão”.

Em seguida, foi discutido, com a participação da audiência, a questão de como gerir simultaneamente a anemia normocítica-normocrómica com a insuficiência cardíaca, tendo-se concluído que “segundo o consenso e as normas da Direção-Geral da Saúde (norma n.º 030/2013 de 31/12/2013 atualizada a 09/04/2015, página 4, ponto 12), o doente reunia condições para suplementação com ferro endovenoso”.

Segundo caso clínico

Passando ao segundo caso clínico, Inês Espiga Macedo começou por elencar os seguintes dados sobre a doente:

  • Idade: 47 anos;
  • Antecedentes pessoais de obesidade, anomalia da glicose em jejum, litíase renal e colescistectomia;
  • Como medicação habitual, a doente apenas tomava o anticoncepcional. 

“Em maio de 2015, apresentou-se à consulta de rotina de planeamento familiar com queixas de cefaleias unilaterais, com foto e fonofobia, menometrorragias e um exame de massa corporal a indicar obesidade (IMC = 31 kg/m2)”, detalhou a palestrante. Face a este quadro de enxaqueca e obesidade, foi ajustada a medicação anticoncecional, pedido um estudo analítico e um diário das cefaleias. 

Inês Espiga Santos deu nota de que, “passado um mês, na consulta seguinte, a doente já não tinha queixas de cefaleias e a menometrorragia estava resolvida, mas tinha sido diagnosticada com microcitose e hipocromia (eritrócitos = 6,56 x 1012/l, HGM = 19,5 pg, VGM = 58,8 fl)”.

Apresentado o caso clínico, foi discutida com a audiência a melhor abordagem à doente descrita, tendo a maioria dos participantes concluído que o mais adequado seria solicitar um estudo da cinética do ferro. “Com efeito, apesar de o acesso ao registo histórico confirmar o diagnóstico de microcitose e e hiopocromia”, o referido estudo “não revelou défice de ferro”, reforçou Inês Espiga Macedo. Entretanto, juntamente com a doente, veio à consulta seu filho de 15 anos, cujas análises revelaram eritrócitos = 6,56 x 1012/l, VGM = 57,9 fL, HGM = 19,4 pg. 

“Face aos novos achados, foi pedido a ambos uma eletroforese das hemoglobinas que, na doente, indicou hemoglobina A2 = 4,6% (ligeiramente aumentada), hemoglobina F = 0,3% (normal), indicadores que são compatíveis com uma beta-talassemia heterozigótica assintomática”, acrescentou Ana Iva Santos.

Em debate esteve, ainda, a abordagem adequada à filha da doente deste caso clínico, com 25 anos: “segundo a circular normativa da Direção-Geral da Saúde (http://nocs.pt/wp-content/uploads/2018/01/hemoglobinopatias.pdf) sobre a prevenção das formas graves de hemoglobinopatias nas mulheres em idade reprodutiva nas consultas de Planeamento Familiar pré-concecional, quando existe anemia e ou microcitose (VGM<80fl) e/ou hipocromia HGM <27 pg sem ferropenia,  ou hemoglobina elevada, ou parâmetros hematológicos normais, mas a família da mulher ou do companheiro é proveniente de determinada zona do país (Beja, Faro, Santarém e Setúbal) ou de comunidades de migrantes, deve pedir-se o estudo de hemoglobinas. No caso de alguma alteração, ou se for o companheiro a ir à consulta, deve a este ser pedido e referenciar para aconselhamento genético”, referiu Inês Espiga Macedo.

Outra realidade cada vez mais destacada no país, e a suscitar a atenção especial das palaestrantes, “é o intenso fluxo de migrantes, sobretudo com origens africanas, indianas, de Timor e do Brasil” e, nesse capítulo, foi partilhado por Ana Iva Santos o caso de “uma menina angolana cuja mãe foi à consulta devido à dieta deficitária da filha e suspeitas de ferropenia. Porém”, realçou, “as análises vieram a revelar uma anemia microcítica hipocrómica e, nestes casos, não podemos preocupar-nos apenas com ferropenias, mas devem ser pesquisadas as causas e a presença de talassemias e hemoglobinopatias e referenciar em função da causa encontrada”.

“A norma da Direção-Geral da Saúde (norma n.º 030/2013 de 31/12/2013, atualizada a 09/04/2015, página 3, ponto 8, também recomenda estudar o tubo digestivo, mesmo em doentes com doença celíaca, se houver história familiar”, acrescentou a especialista.

Terceiro caso clínico

Finalmente, foi abordado o terceiro, e último caso clínico que reporta a outra doente acompanhada por Ana Iva Santos com:

  • Idade: 75 anos;
  • Antecedentes pessoais a destacar: uma histerectomia, cirurgia a cataratas e uma amigdalectomia na infância.

De acordo com a palestrante, “a sua primeira consulta, em janeiro de 2018, deveu-se ao cansaço que a doente sentia há já alguns anos enquanto caminhava e que se tinha vindo a acentuar nos últimos meses quando tentava andar mais depressa. Tinha também associada dor torácica que aliviava quando parava ou inclinava o tórax para frente. Em relação ao exame objetivo, não havia nada a destacar exceto mucosas pálidas. Portanto”, resumiu, “tinha uma dor torácica e dispneia, pelo que foram pedidas análises, ecocardiograma e uma prova de esforço”. 

A doente voltou à consulta uns meses mais tarde com um hemograma que revelou:

  • Hemoglobina =7,8 g/dl; 
  • Ferritina = 2 ng/dl;
  • Vitamina B12 =183 pg/ml; 
  • ureia=54mg/dl. 

Conforme notou Inês Espiga Macedo, “o desafio que se colocou em relação a este caso foi negociar [com a doente] a referenciação para os serviços de urgência para eventual transfusão, que a doente recusou por motivos religiosos”.

“Assim”, referiu Ana Iva Santos, “optou-se pela suplementação oral de sulfato ferroso e cianocobalamina. Foi ainda pedida uma endoscopia digestiva alta e colonoscopia que revelou uma neoplasia gástrica, o que levou a doente a ser referenciada para o Instituto Português de Oncologia, com indicação de recusa de transfusão para o patient blood management. A doente foi submetida a uma gastrectomia total e quimioterapia com sucesso”.

Uns anos mais tarde, em 2020, a doente voltou ao consultório Ana Iva Santos, mas com outras queixas: “apresentava cansaço e falta de memória”. O exame objetivo revelou mucosas descoradas, foi pedido um estudo analítico e uma TAC e a renovação da medicação habitual que revelou descontinuação da suplementação da cianocobalamina. Neste reporte de Ana Iva Santos, “as análises revelaram uma anemia macrocítica, (VGM = 102 fl, vitamina B12 = 138 pg/ml e hemoglobina = 11 g/dl) e foi novamente prescrita a cianocobalamina, que normalizou os marcadores e reverteu os problemas de memória”. Em seguida, foi revisto o algoritmo das anemias macrocíticas (VGM>100) seguida o qual a referenciação depende dos resultados do estudo analítico.

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.