Com uma incidência de mais de 12 mil novos casos anuais e uma mortalidade que ronda os 1.700 óbitos em Portugal, o cancro digestivo continua a ser subdiagnosticado. Falta uma estratégia de prevenção eficaz e sobretudo os meios de diagnóstico necessários a um rastreio de base populacional, tantas vezes prometido pelo poder político quantas as adiadas. Uma escassez que a contratação com o setor privado e social não conseguiu resolver, nem o aumento da capacidade de resposta dos hospitais centrais do SNS. Em muitos casos, o tempo de espera para os doentes seguidos num hospital público é superior a um ano, o que é absolutamente inaceitável no entender de médicos e também das associações de doentes. Como também são inaceitáveis as iniquidades que se registam ao nível das acessibilidades: denuncia o presidente da Europacolon Portugal
JORNAL MÉDICO | Pesem os avanços registados ao nível do diagnóstico e tratamento, a verdade é que nas suas várias manifestações, o cancro digestivo continua a ser subdiagnosticado, ou diagnosticado tardiamente, com reflexos na morbilidade e mortalidade associada, que se mantém muito elevada entre nós. Que razões justificam o atual panorama?
Vítor Neves | De acordo com dados de 2012, a incidência do cancro digestivo em Portugal é de cerca de 13 mil novos casos por ano. Já segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgados em 2015, morreram aproximadamente 4.000 portugueses com cancro colorretal, 2.300 com cancro do estômago e 1.400 com cancro no pâncreas. São números preocupantes e que se devem, no nosso entender, a dois fatores principais. Primeiro ao facto de em Portugal se continuar a privilegiar a vertente curativa em detrimento de políticas de prevenção, sobretudo na área digestiva. Ao contrário do que acontece na maioria dos demais países europeus, em Portugal não se encontra implementado um rastreio de base populacional tendo como alvo o cancro colorretal (CCR) que é, de entre as doenças oncológicas, a mais rastreável; aquela em que o rastreio apresenta a melhor relação custo/benefício... Esta lacuna coloca o nosso país na cauda da Europa no que toca quer à incidência, quer à mortalidade, como revelam os dados dos diversos estudos disponíveis.
Outra das razões que podem explicar a situação é a iliteracia em saúde da população, que se revela na falta de consciencialização para a necessidade de se protegerem contra a doença, desde logo aderindo e provocando (solicitando) junto do seu médico assistente o rastreio.
JM | Existe algum estigma associado ao exame...
VN | Prevalece o “tabu” relativamente à dor associada à colonoscopia. Trata-se de um falso argumento, uma vez que a colonoscopia com sedação é comparticipada desde 2014 pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). Regista-se também uma sobrevalorização de potenciais riscos, como a perfuração do intestino, que a evidência mostra que são infundados; que se trata de um exame seguro e eficaz...
Como contra-argumento... Todos sabemos que o sofrimento e os custos associados a uma doença oncológica como o cancro do intestino são muitíssimo superiores aos que resultam do rastreio.
Importa também dizer que aquilo que se passa na Europa, de uma forma geral, é a implementação de rastreios de base populacional, anuais, de pesquisa de sangue oculto nas fezes (PSOF) à população com idades compreendidas entre os 50 e os 74 anos. Neste modelo, só perante resultado positivo é que se avança para a colonoscopia, que deve, obrigatoriamente, ser realizada no prazo máximo de 15 dias.
JM | Anual?
VN | Sim dada a baixa fiabilidade da PSOF, em que cerca de metade dos “negativos” podem vir a revelar-se “falsos-negativos”.
JM | Em março o Governo anunciou que iria implementar até ao final do ano um rastreio de base populacional do cancro colorretal. Os sinais que lhe chegam do terreno corroboram essa intenção?
VN | Bom... março é o mês europeu do cancro colorretal, pelo que a comunicação social dá mais destaque à doença nessa altura... E às promessas políticas que se vão repetindo, ano após ano. Ora, a verdade é que a Europacolon foi fundada há uma década, ao longo da qual já morreram mais de 30 mil pessoas por cancro do intestino... E muitas outras foram afetadas por tratamentos muito duros e que causaram grande sofrimento, com custos sociais enormes. A implementação do rastreio de base populacional sempre foi a nossa prioridade...
O senhor secretário de Estado adjunto e da Saúde comprometeu-se, de facto, em declarações aos jornalistas feitas em março, que o rastreio de base populacional iria arrancar em 2016. Depois disso, foi publicado um despacho que determina que as ARS devem implementar na sua área geográfica medidas coordenadas para a sua implementação e que o rastreio deveria iniciar-se em 2016 e estar concluído até 31 de dezembro de 2017. A norma determina ainda que as ARS devem desenvolver iniciativas que visem melhorar a taxa de adesão aos rastreios, garantir a sustentabilidade da sua execução bem como informar os cidadãos da importância dos mesmos para a deteção da doença ainda em fase subclínica, evitando ou diminuindo a carga da doença.
Na sequência da publicação do despacho, a Assembleia da República, ainda em abril, aprovou por unanimidade uma resolução recomendando que o Governo concretize o plano estratégico para a implementação dos rastreios oncológicos de base populacional, previsto na norma, salvaguardando o enquadramento das recomendações e considerações das entidades científicas internacionais, designadamente no que toca à percentagem da população que deve ser contemplada e aos meios necessários para a realização dos rastreios, entre outras medidas.
Face a todas estas manifestações de interesse, acreditamos que, finalmente, alguma coisa vai acontecer. Isto porque até aqui nenhum governo havia assumido qualquer compromisso. Este diz que vai fazer... Mas como é óbvio a Europacolon vai continuar a monitorizar a situação e em breve irá verificar junto das ARS o que foi feito para cumprir aquilo que é determinado pelo despacho e que reflete a vontade manifestada publicamente pelo próprio governo. Acreditamos, pois, que este rastreio tem mesmo que avançar em 2016. E têm que ser divulgados os dados obtidos.
JM | Acredita que os recursos no terreno são suficientes para levar a bom porto a tarefa?
VN | Aquilo que nós sabemos relativamente às colonoscopias – temos realizado monitorizações trimestrais – é que se registava um défice muito grande na zona da Grande Lisboa, onde existiam apenas quatro unidades convencionadas a realizar colonoscopias com sedação. Eram manifestamente insuficientes e foram alvo de inúmeras notícias em que se mostravam utentes que esperavam de véspera à porta das unidades em busca de vez para realizar o exame, sem muitas vezes sem o conseguirem. Parecia que estávamos em guerra; numa situação de emergência marcada pela escassez dramática de serviços. Face ao alarme social que se gerou, o anterior governo anunciou a celebração de novos contratos de convenção com 37 novas unidades.
A Europacolon integra uma organização homónima internacional, presente em mais de 27 países e é ainda membro fundador da WPCC, uma organização mundial focada nos assuntos relacionados com o cancro do pâncreas, área onde há ainda muito a fazer para melhorar o atual panorama
JM | Mas veio a verificar-se que era só parra... Serviços, nada!
VN | A Europacolon denunciou imediatamente a situação, expondo o que de facto tinha sido feito, que ficava muito aquém do anunciado. Hoje a realidade mostra que existe um total de cerca de uma dezena de unidades convencionadas. Ou seja: a situação não está resolvida, mas melhorou.
Isto na Região de Lisboa e Vale do Tejo. Já nas Regiões Norte e Centro não há registo de desvios aos tempos máximos estipulados pela norma da DGS para a realização de exames.
JM | E os hospitais do SNS? Não poderiam aumentar um pouco a resposta?
VN | Nos hospitais centrais continua a não haver uma resposta aceitável – alguns nem para os pacientes internos. Há casos em que o tempo de espera, para os próprios doentes seguidos pelo hospital é superior a um ano, o que é absolutamente inaceitável.
JM | Um inquérito recente promovido pela Sociedade Portuguesa de Oncologia aos seus associados revela que a maioria dos inquiridos tem a perceção de que em Portugal os doentes não têm acesso aos tratamentos mais inovadores disponíveis no resto da Europa e que existem grandes divergências nacionais no acesso à tecnologia... É também esta a vossa perceção?
VN | Sim, particularmente no que toca às assimetrias regionais. Um doente que é seguido, por exemplo, num dado hospital do Porto ou de Lisboa, pode aceder a medicamentos que doentes acompanhados em Abrantes, Coimbra ou em Vila Real não conseguem aceder. É urgente que se estabeleça a equidade de acesso a novas tecnologias em todo o país; que todos os doentes possam aceder aos melhores tratamentos independentemente da zona onde residem ou do hospital onde são tratados. Como também é urgente que as associações representativas dos doentes participem nas decisões de aprovação das novas tecnologias e sua comparticipação e também na negociação dos preços da inovação com a indústria farmacêutica. Estamos certos de que se tal acontecesse os resultados seriam muito mais satisfatórios para todas as partes envolvidas, a opinião pública ficaria mais consciente do que, de facto, se passa a este nível.
JM | Os doentes têm capacidade de negociação?
VN | Como é evidente! Lembra-se com certeza do que aconteceu no caso da Hepatite C, em que andámos um ano e meio a negociar preços sem que se chegasse a acordo e de um dia para o outro tudo ficou resolvido porque um doente interpelou o senhor Ministro na Comissão Parlamentar de Saúde pedindo-lhe que não o deixasse morrer. A imagem que passou nas notícias retirou qualquer margem de manobra ao Governo. Teve mesmo que chegar a acordo e resolver o problema.
JM | Falámos de hospitais... Mas temos a montante os centros de saúde que são os pontos de contacto dos doentes e de referenciação para colonoscopia. Têm recursos para cumprir um rastreio de base populacional como o que foi aprovado pelo governo?
VN | Têm que ter! Os centros de saúde têm que ter registos da população em risco, em que se incluem os indivíduos com idades compreendidas entre os 50 e os 74 anos e que tiveram resultado negativos na PSOF no ano anterior e que por isso têm que realizar todos os anos novo rastreio, como aliás é determinado por norma da Direção-Geral da Saúde. E têm que encontrar forma de convocar por carta, telefone, ou por outro meio estes doentes para a realização do novo teste, bem como todos os outros, entre os 50 e 74 anos de idade que estejam dentro dos critérios do rastreio de cancro do intestino.
JM | De acordo com a Resolução da Assembleia da República, a implementação deve garantir a equidade entre as várias regiões do país... Dadas as assimetrias que hoje se registam, acha viável?
VN | Achamos! O rastreio deve ser implementado a nível nacional garantindo igualdade de acesso a toda a população. É isso que o Despacho determina e também o que os deputados recomendam ao Governo... E que este afirmou que iria concretizar.
JM | Há pouco referiu a necessidade de reporte da informação... No caso será nacional, com um fluxo de dados com origem em todo o território. Como operacionalizar o tratamento dos dados?
VN | O próprio despacho define que caberá aos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) criar os sistemas informáticos que permitam, por um lado, a integração das aplicações que irão fornecer os dados de contacto da população a rastrear e, por outro, a partilha de informação de resultados do rastreio e de resultados de tratamento. É isso que a norma determina.
Esta informação deve também permitir conhecer outros dados, como por exemplo os utentes que não foi possível contatar e quais as razões, assim como a capacidade de resposta às necessidades. Por exemplo, se a capacidade instalada foi suficiente para garantir que todos os positivos tiveram acesso a colonoscopia no prazo determinado pela norma da DGS.
É necessário que a informação de retorno permita determinar a capacidade instalada, de modo a que sejam encontradas soluções que garantam a equidade no acesso.
No campo da adesão dos utentes às convocatórias para o rastreio do CCR, as associações de doentes podem e devem ter um papel ativo no aumento da sensibilização da população para as vantagens da concretização do rastreio e diagnostico precoce desta doença, intervindo em várias áreas da sociedade civil promovendo as vantagens de uma politica de saúde preventiva.
JM | Que iniciativas tem a Europacolon agendadas para breve?
VN | A Europacolon integra uma organização homónima internacional, presente em mais de 27 países e é ainda membro fundador da World Pancreatic Cancer Coalition (WPCC), uma organização mundial focada nos assuntos relacionados com o cancro do pâncreas, área que tal como acontece relativamente ao cancro do intestino há ainda muito a fazer para melhorar o atual panorama, que é deveras preocupante. Trata-se de uma patologia que embora não registe uma incidência tão elevada como a do cancro do intestino, está associada a uma letalidade dramática, quase sobreponível à da incidência.
O trabalho que temos desenvolvido ao longo destes 10 anos de existência tem incidido, sobretudo, na área da literacia em saúde e da prevenção, fomentando também uma maior participação dos doentes nas decisões clínicas que lhes dizem respeito e incentivando os médicos para que contribuam para que tal aconteça.
Outra das áreas em que desenvolvemos atividades é a da formação de crianças dos 11 aos 13 anos, durante todo o ano letivo, através das quais ensinamos hábitos de vida saudáveis, que contribuam para diminuir o risco de virem mais tarde a desenvolver a doença, por um lado, e para que sejam elas próprias agentes de sensibilização para esta problemática. Nestas ações, em que são também envolvidos os pais e os professores já participaram cerca de quatro mil crianças.
Para além destas ações, a Europacolon disponibiliza apoios de diversa natureza aos doentes, desde logo a possibilidade de obterem uma segunda opinião médica sobre a sua situação clínica. Disponibilizamos também consultas de psicologia, de nutrição, apoio jurídico, grupos de terapias complementares e ainda a certificação de profissionais de saúde na área da estomaterapia, onde se regista um deficit muito grande de especialistas a nível nacional. Temos ainda uma linha telefónica de apoio permanente e serviços de apoio ao domicílio.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.