Médico, neurologista e atualmente representante dos hospitais privados ao nível europeu, Paul Garassus, tem no doente a preocupação central da sua atividade, e a padronização do acesso e da qualidade dos cuidados de saúde como missão. Em entrevista exclusiva ao nosso jornal, o presidente da União Europeia de Hospitalização Privada partilhou a sua “visão responsável” de um setor em expansão, a mesma com que impregna o trabalho diário com os Estados-membros, na procura de soluções e na defesa de valores – alienáveis, para o organismo que dirige – como a mobilidade e a liberdade de escolha. Garassus recebeu-nos na sede da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), em Lisboa, na manhã que antecedeu um encontro com o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes. Uma reunião que, de acordo com o responsável francês, teve como mote a partilha informal de expetativas face ao futuro próximo deste setor nuclear da saúde
JORNAL MÉDICO | Diz, no seu editorial no website da União Europeia de Hospitalização Privada (UEHP), que a este organismo é atualmente exigida uma postura “bastante defensiva”. Por que é que assim é?
PAUL GARASSUS | Essa é uma questão que já perdeu um pouco a atualidade, e passo desde já a explicar o porquê... Com frequência, o setor hospitalar privado europeu sentia-se um pouco “maltratado” pelos governos. Governos esses que, tendo responsabilidades importantes ao nível da gestão do sistema de saúde, sempre se apoiaram nos hospitais públicos como prestadores de saúde privilegiados. Já o setor privado – apesar de ser, na sua essência, independente e dinamizador – sempre sofreu de uma certa diferença no tratamento e consideração por parte dos responsáveis políticos.
Após a criação da UEHP – há cerca de 25 anos – predominava no seio da organização um certo espírito militante, de forma a reivindicar igualdade face ao setor público. Um pouco por todos os países, a sensibilidade do setor privado dos hospitais é a de que não é tratado de uma forma verdadeiramente igual em relação ao setor público.
A partir da minha tomada de posse como presidente, a UEHP procurou adotar uma postura diferente, que não fosse tão reivindicativa, nem tão contra outros atores do sistema de saúde, mas mais assente nas nossas especificidades, forças e mais-valias. Estamos conscientes das vantagens que apresentamos, em particular, a capacidade de adaptação à inovação médica e tecnológica.
Assim sendo, deixámos cair a mensagem mais crítica/militante/reivindicativa. Esta é menos importante do que uma abordagem virada para o futuro, em que mostramos que somos atores prontos para o desafio da inovação em saúde.
JM | E essa abordagem menos “militante” está a dar os frutos pretendidos?
PG | A nova estratégia de comunicação da UEHP foi adotada porque percebemos que o objetivo fundamental a atingir é o equilíbrio do sistema de saúde, devendo nós ser parceiros positivos e não apenas atores críticos, para que esse equilíbrio seja efetivo. Para sermos positivos temos que ser pró-ativos e verdadeiros atores da mudança, dar a conhecer as nossas forças e talento e apaziguar esse lado mais crítico. Assim, a estratégia de comunicação para cada país, e junto de cada governo, é a de mostrar as qualidades do sistema privado e, ao nível europeu, sermos reconhecidos pelas administrações e pelos atores políticos como uma solução possível para a estabilidade do sistema de saúde.
Hoje em dia, somos reconhecidos pela maior parte destes atores... No ano passado, realizámos o nosso congresso em Milão, com a participação de deputados europeus e elementos da Comissão Europeia (CE), com uma forte mensagem: o setor privado é útil e eficiente para o sistema de saúde europeu. E esse é um reconhecimento forte, fruto da nossa estratégia atual.
Acreditamos que a liberdade de escolha permite criar uma dinâmica positiva – de certa forma competitiva, porém atrativa –, na medida em que os hospitais privados são capazes de oferecer cuidados de saúde da melhor qualidade aos cidadãos europeus
JM | Numa altura em que a Europa enfrenta problemas socioeconómicos e políticos estruturais, quais os principais desafios para o setor privado da saúde decorrentes deste cenário e que papel pode ter, neste contexto, a UEHP?
PG | Essa é a mais importante das questões... Sendo que a resposta pode ser sintetizada em três pontos. Em primeiro lugar: saúde pública e autorizações de exercício por parte dos reguladores nacionais.
Em segundo lugar: constrangimentos orçamentais. A saúde está cada vez mais cara, com a despesa em saúde a oscilar, na Europa, entre os 7% e os 11% da riqueza nacional. Em vários países europeus – nomeadamente em Portugal, que sofreu bastante com a crise económica –, fomos forçados a reduzir os custos ao mesmo tempo que aumentámos a qualidade. O nosso trabalho passa por encontrar soluções de qualidade de cuidados razoáveis dentro de um sistema de saúde financiado por dinheiros públicos, enquanto parceiros médicos e económicos. Acredito sinceramente que o setor privado é extremamente eficaz e que a nossa posição é de competição positiva.
Em terceiro lugar: inovação. A grande revolução tecnológica está a acontecer e um exemplo disso é a cirurgia ambulatória, que permite internamentos muito mais curtos, sendo fundamental uma eficaz articulação de cuidados, a montante e a jusante dos hospitais. O setor privado tem o dever de estar permanentemente em adaptação à inovação tecnológica e, neste domínio, as tecnologias de informação são essenciais para o seguimento do cidadão e para a melhoria da qualidade na prestação de cuidados. Porém, colocam um problema crucial: o financiamento. Hoje em dia, aos hospitais é exigido que sejam atores coordenados com os restantes atores do sistema de saúde, mas esquecemo-nos de lhes atribuir um orçamento específico para a criação ou desenvolvimento de tecnologias de comunicação/informação necessárias à gestão do paciente. A UEHP espera, como tal, poder incluir nas reformas tecnológicas ao nível dos hospitais um budget específico para tecnologias de informação.
JM | A crise financeira constituiu uma oportunidade para os hospitais privados?
PG | Obrigatoriamente. Não podemos esquecer que os problemas de Portugal são os problemas da Europa, e que os problemas da Europa também se vivem em Portugal. A crise económico-financeira foi generalizada e sentiu-se um pouco por toda a Europa. E um pouco por toda a Europa, o setor privado teve que se adaptar. Estou convencido que o setor privado é uma das respostas possíveis em cenário de constrangimento orçamental. Porquê? Na medida em que presenta maior flexibilidade e inovação, uma visão estratégica e um pensamento de investidor – caraterísticas que podem perfeitamente configurar soluções para os constrangimentos estruturais sentidos pelos Estados-membro.
JM | Em Portugal é costume dizer-se que “a saúde não tem preço”, mas a verdade é que tem... O setor privado da saúde gera milhões de euros. Como faz a UEHP frente a este “rótulo” pejorativo da saúde como um negócio?
PG | Essa fórmula de que “a saúde não tem preço” existe em todas as línguas. Mas, ainda que não tenha um preço, a saúde tem um custo e a questão crucial é onde investir bem o dinheiro público de forma a potenciar a qualidade dos cuidados.
Atualmente, a perspetiva de desenvolvimento do setor privado é fortemente guiada pela eficiência. O que defendemos, a nível europeu, é a clarificação dos objetivos e a definição de um contrato que configure a garantia de um serviço de qualidade para o paciente. Após esse contrato ser efetuado pelos hospitais públicos, pelos privados sem fins lucrativos e pelos privados com fins lucrativos, não é uma questão importante para mim se o equilíbrio orçamental é respeitado, mas sim se a qualidade dos cuidados prestados é obtida no serviço ao paciente.
Os hospitais não são uma exceção no que concerne ao financiamento do setor privado por dinheiro público. A indústria farmacêutica e dos dispositivos médicos apresentam caraterísticas semelhantes. Sabemos que nos países da OCDE, um terço da despesa com saúde é feita nos hospitais, outro terço com medicamentos e outro com serviços. Então porque merecem os hospitais mais críticas...?
O setor privado deve desenvolver transparência, ética e a noção de que a prestação efetuada é eficaz para a tarifa atribuída pelos governos. Porém, o verdadeiro problema – em benefício dos hospitais privados – reside no défice dos hospitais públicos. Será que hoje em dia somos capazes de equilibrar a despesa, através de um ator económico privado, gestionário, bem organizado e eficaz? Esta é a verdadeira questão... E ao chegarmos a esta questão vamos justificar um investimento no setor privado, que oferece uma resposta de qualidade ao paciente. Para mim, a grande prioridade do setor privado é a qualidade dos cuidados, num pacote de responsabilidade, que respeita o equilíbrio orçamental.
Aos hospitais é exigido que sejam atores coordenados com os restantes atores do sistema de saúde, mas esquecemo-nos de lhes atribuir um orçamento específico para a criação ou desenvolvimento de tecnologias de comunicação/informação necessárias à gestão do paciente
JM | Que valores sustentam a hospitalização privada europeia?
PG | O doente está no centro da nossa atividade. E esta não é uma mera declaração. O doente é o nosso verdadeiro investimento! Os valores que sustentam a hospitalização privada europeia são três: equidade no acesso e na qualidade, mobilidade/livre escolha e eficácia/responsabilidade em cenários de constrangimento orçamental.
No que ao primeiro ponto diz respeito, gostava de esclarecer que participo, de há três anos a esta parte, em grupos de trabalho europeus sobre qualidade de cuidados. Hoje em dia temos necessidade de standards de qualidade em saúde em toda a Europa. O meu trabalho, a nível europeu, é o de garantir que todos os cidadãos europeus têm as mesmas oportunidades em termos de acesso e de qualidade de cuidados de saúde. Seja aqui em Portugal, em França (onde resido), ou ainda na Bulgária ou na Roménia... A UEHP reuniu recentemente com deputados europeus búlgaros, que se mostraram perfeitamente conscientes da importância do setor privado de saúde para a prestação de um serviço de qualidade aos cidadãos, mesmo em países com um poder de compra baixo.
No que concerne à mobilidade dos doentes, trabalhamos diretamente com associações de doentes em toda a Europa de forma a que esta diretiva europeia seja respeitada (a nossa perceção é a de que esta diretiva não tem sido corretamente transposta pelos Estados-membros). Acreditamos que a liberdade de escolha permite criar uma dinâmica positiva – de certa forma competitiva, porém atrativa –, na medida em que os hospitais privados são capazes de oferecer cuidados de saúde da melhor qualidade aos cidadãos europeus.
A par de todos estes compromissos, aceitamos e adaptamo-nos aos constrangimentos económicos e temos uma visão responsável ao serviço de todos os cidadãos europeus, constituindo-nos como parceiros naturais quando o assunto é eficácia.
JM | Estamos a falar do setor da saúde, mas pode o adjetivo “saudável” ser utilizado para caraterizar a competição/concorrência entre sector público e privado?
PG | Essa é uma questão bastante delicada, uma vez que se considera, amiúde, que existe um confronto entre setor público e setor privado. A título pessoal, posso dizer que nutro um profundo respeito pelo setor público. O alvo da minha ação é a qualidade do serviço e encaro a ideia de uma situação competitiva como uma vantagem. É preciso salientar que não é o setor privado que diz que esta concorrência é positiva, mas sim a CE. Esta premissa é essencial, na medida em que devemos abandonar uma visão monopolista de um regulador público, assumindo que a diversificação da oferta constitui um serviço ao cidadão e é uma recomendação europeia. É difícil assumir isto porque a história dos sistemas de saúde da totalidade dos Estados-membros é uma história de proteção social como bem coletivo. Respeitamos isso, mas sem deixar de considerar que a diversificação da oferta é uma mais-valia.
JM | Considera que a despesa pública com a saúde é excessiva em Portugal, por comparação com a realidade europeia?
PG | Não posso, nem vou imiscuir-me nos assuntos nacionais de Portugal, mas posso assegurar – uma vez que também me ocupo da Associação de Economia da Saúde em França – que num futuro próximo, as despesas com saúde em Portugal e nos outros países europeus vão aumentar. Porquê? Devido ao envelhecimento populacional, a um melhor acesso aos cuidados de saúde, à emergência de novas tecnologias médicas... Tudo isto faz como que o orçamento geral orientado para a saúde continue a aumentar.
A verdadeira preocupação deve ser que esta despesa, ainda que crescente, seja razoável, não colocando em risco o equilíbrio orçamental dos países. Sobretudo, que o dinheiro gasto, seja gasto com eficiência. Não encaro esta questão numa lógica de mercado, mas numa lógica de otimização da prestação de cuidados, em que o papel dos hospitais privados – tal como o da indústria de medicamentos e de dispositivos médicos – pode ser extremamente útil. Desejo apenas que os hospitais privados possam ser parceiros e, respondendo à sua questão, sim, espero – e esta é uma visão positiva – que a despesa com a saúde em Portugal continue a aumentar, uma vez que a população não só necessita, como terá benefícios decorrentes dessa subida. Sempre com a reserva de que o equilíbrio orçamental dos Estados-membros é respeitado.
Encaro a ideia de uma situação competitiva como uma vantagem. É preciso salientar que não é o setor privado que diz que esta concorrência é positiva, mas sim a Comissão Europeia
JM | Penso que não será uma situação generalizada a outros países europeus, mas em Portugal há uma visível “promiscuidade”, decorrente do facto de os profissionais hospitalares – nomeadamente médicos – exercerem simultaneamente no setor público e no setor privado. Qual a posição da UEHP sobre exclusividade de funções?
PG | Esse é, de facto, um aspeto muito particular da realidade portuguesa, mas que tem pouca expressão noutros países europeus. Tenho conhecimento que existe, também na Polónia, essa atividade mista por parte dos profissionais de saúde. Nos principais países da UEHP – França, Alemanha e Itália – a grande maioria dos profissionais de saúde, nomeadamente os médicos, exerce exclusivamente num dos dois setores. Não há regras, nem tenho como argumentar a favor ou contra a exclusividade de funções. O que posso afirmar é que é também missão do setor privado gerir recursos humanos cada vez mais raros: os médicos. Posso ainda reafirmar que a principal motivação da hospitalização privada europeia é acompanhar os profissionais de saúde (não exclusivamente médicos), de forma a lhes serem garantidas as melhores condições ao nível do seu exercício profissional, da sua formação e educação contínua e da partilha de responsabilidade com as equipas de saúde. Mais do que agir, trata-se de bem agir.
JM | Pode levantar um pouco o véu sobre os temas em cima da mesa no encontro de hoje à tarde com o ministro da saúde português?
PG | Posso dizer que me sinto muito honrado com este convite e, desde já, que não existe qualquer ata/agenda de trabalhos prevista a seguir. Trata-se de um encontro informal em que poderei inteirar-me da análise de um governante da saúde sobre um país que é essencial no seio da Europa, bem como partilhar os principais pontos e prioridades de ação da UEHP.
Portugal sempre foi um membro muito ativo da UEHP para antecipar todas as questões estruturais, como a livre escolha e a mobilidade dos doentes
JM | O que espera a UEHP da parte dos decisores políticos portugueses?
PG | Estou feliz pelo convite e não tenho nada a perguntar. O meu único desejo é a procura de cooperação. A UEHP representa um grupo de prestadores de saúde, cujo dever é ser eficaz e bem organizado em cenários de constrangimento económico, defendendo a igualdade no acesso e na qualidade da prestação de cuidados.
Não temos um discurso militante, mas sim um discurso construído com base em recomendações europeias. Portugal sempre foi um membro muito ativo da UEHP para antecipar todas as questões estruturais, como a livre escolha e a mobilidade dos doentes. Não tenho outro objetivo do que explicar que o meu trabalho europeu se baseia em ser ator da inovação terapêutica, qualidade e competitividade e que a hospitalização privada é útil na otimização da oferta de cuidados de saúde.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.