Longe de alcançar consenso, o tema da morte medicamente assistida (MMA) está a ganhar passos na sociedade, incluindo todos. Mais do que o ato em si mesmo, em causa estão conceitos como dignidade e liberdade, cujos sentidos atribuídos dividem os movimentos cívicos que se apresentam favoráveis e contrários a esta alteração legislativa. Diferenças à parte, há um ponto em que ambos os movimentos cívicos acordam entre si: a infrutuosidade de referendar o tema. O Jornal Médico esteve à conversa com as fundadoras do movimento "Stop Eutanásia", Graça Varão e Sofia Guedes. Leia aqui a entrevista do movimento "Direito a morrer com dignidade".
Jornal Médico | Etimologicamente, o termo grego “eu + thanatos”, pode ser traduzido como “boa morte”. O que é que, na opinião do movimento “Stop Eutanásia”, pode ser considerada uma boa morte?
Movimento “Stop Eutanásia” | A morte natural é sempre uma boa morte. Há dimensões de nós menos visíveis, mas que estão presentes em todos as circunstâncias e é essencial respeitá-las, da conceção à morte. A chegada desse momento só faz sentido se estivermos perante uma morte natural: nem morte provocada, antecipada ou atrasada através de fins desproporcionados, como a distanásia.
JM | A vida é um direito? A quem pertence?
MSE | Mais do que isso, é um valor absoluto e pressuposto de todos os outros direitos inerentes à sociedade humana. Ela é, per si, a essência de todos os direitos e deve ser respeitada e protegida.
JM | Mas a quem pertence a vida individual?
MSE | A vida não é algo objetivo e não está na ordem do ter, mas do ser. Não temos a vida, somos a vida. Eu não determinei a minha vinda e, nesse sentido, não detenho a minha vida.
JM | Quais as maiores preocupações do movimento perante a possibilidade de esta prática (eutanásia) ser aprovada?
MSE | Se for legislada perde-se o princípio inviolável da vida, tornando-o relativo para a sociedade em detrimento da circunstância. O seu valor e dignidade passam a depender de questões como o estado de fragilidade ou o nível sofrimento daquela pessoa, dando permissão a terceiros, como o médico, para decidir a validade daquela vida, se deve ou não ser eliminada.
JM | Considera que algumas camadas mais fragilizadas da sociedade podem estar mais vulneráveis a esta situação?
MSE | Com certeza! Quanto maior a fragilidade humana, mais vulnerável se torna perante uma sociedade com leis que capacitam o outro para matar alguém em função de determinados critérios…
JM | A experiência de outros países é motivo de preocupação para o movimento?
MSE | Em países como a Bélgica, onde se verifica o fenómeno da 'rampa deslizante', ocorrem situações a que não podemos ficar insensíveis e que demonstram que algo de muito grave está a acontecer do ponto de vista humano.
JM | E tendo em conta a seriedade desta questão faz sentido referendar o tema?
MSE | Não, porque a vida não pode ser referendada ou questionada.
JM | Receia que a opinião pública seja contrária àquilo que defendem? Ou, por outro lado, acreditam que a população possa não ter suficiente nível de esclarecimento para responder objetivamente a esta questão?
MSE | A maioria das pessoas não estão preparadas e não iriam responder tendo por base todas as informações. Por outro lado, há um outro fenómeno associado: o da falsa compaixão. Quando ouvimos o outro lado do debate abordar esta questão parecem tratar-se de pessoas bem-intencionadas – e não duvidamos que o sejam – quando alegam a compaixão por aquele que sofre, mas trata-se, muitas vezes, de uma falsa compaixão. A verdade é que, quem está próximo, já não quer encarar o sofrimento do doente, fruto da sociedade egoísta em que vivemos.
JM | Mas essa é a opinião de terceiros. A tónica da eutanásia é a manifestação da vontade do próprio doente para que haja um fim do seu sofrimento. O movimento não considera que esta seja uma posição válida? Falamos também, muitas vezes, de que hoje em dia, já é possível pôr fim a vários tipos de dor física, mas e a componente emocional?
MSE | A experiência de entidades estrangeiras a que o “Stop Eutanásia” está ligado diz-nos que um pedido de eutanásia é sempre um pedido de auxílio de alguém que está a viver uma situação de grande fragilidade. É alguém que diz “eu preciso de ajuda, olhem para mim, não aguento mais estar sozinho neste sofrimento”. Essa solidão e abandono são, de facto, aquilo que mais faz sofrer as pessoas, e é aí que a sociedade precisa de ter um papel mais ativo. Para o sofrimento clínico há resposta. Curar o sofrimento emocional exige mais solidariedade e humanização entre as pessoas, não das equipas médicas, mas da própria família e sociedade que, no fundo, são a moldura em que o doente se enquadra. As pessoas vivem muito voltadas para si mesmas, em busca do seu próprio bem-estar, e há falta de tempo para olhar e escutar o outro, para dar a mão e acompanhar, o que é, muitas vezes, aquilo que ele mais precisa. O maior sofrimento emocional é alguém sentir-se abandonado na sua fragilidade e não ter perto quem lhe é querido.
JM | A aposta na Rede de Cuidados Continuados e Cuidados Paliativos é a resposta que o movimento espera, do ponto de vista médico, como um investimento na saúde e no bem-estar do doente?
MSE | Uma sociedade que se quer verdadeiramente desenvolvida coloca o cidadão no centro da questão. Deve ser o próprio Estado a oferecer políticas públicas que tenham em consideração os mais frágeis, sós, dependentes ou em sofrimento. Todas as dimensões devem ser contempladas nestas políticas: familiar, saúde, segurança social, etc. Do ponto de vista clínico faz sentido que sejam criadas mais portarias e normativas e que sejam mais desenvolvidos os cuidados continuados e paliativos, a fim de que as ideias não fiquem só no papel.
JM | Considera que esta é uma questão que diz respeito não apenas aos doentes e às suas famílias, mas a toda a sociedade?
MSE | É, de facto, uma questão social e até cultural. As sociedades modernas, pelas várias características que conhecemos, tornaram-se extremamente egoístas. Basta um sorriso e um olhar frontal para que quem está doente sinta que é querido e tem o mesmo valor, independentemente de estar fragilizada, de não ser produtiva ou ter eficácia.
JM | Entramos num outro ponto. O que é a dignidade? A pessoa já não ter dignidade ou merecer morrer de forma digna são questões que, para o movimento, se colocam? A doença retira ou não dignidade à pessoa?
MSE | Nem pensar! A dignidade é um pressuposto da vida humana.
JM | Mas a dignidade de uma vida não exige condições?
MSE | Não, a dignidade de uma vida é incondicional, desde a conceção até à morte natural, independentemente das suas circunstâncias: frágil, dependente, próxima da hora da morte, sozinha ou não. Não existem vidas mais ou menos dignas em função da pessoa ser mais ou menos capaz.
JM | A necessidade de tornarmos a pessoa o centro de tudo vai ao encontro de uma ideia defendida pelo ministro da saúde, Adalberto Campos Fernandes, a propósito da prestação dos cuidados de saúde. Como é que comenta o seu silêncio perante este tema?
MSE | Não diria que haja um silêncio, de todo. Penso que está a acompanhar atentamente e a desenvolver o trabalho que lhe compete. Tem demonstrado vontade e avançado com iniciativas concretas com vista a uma melhor cobertura, desenvolvimento e eficácia dos cuidados continuados e paliativos, de que são exemplo a recente portaria n.º 165/2016, de 14 de junho, onde é referido que a sua existência “diminui os tempos de internamento hospitalar, os reinternamentos, os recursos aos serviços de urgência, aos cuidados intensivos, à obstinação terapêutica e, consequentemente, melhoram a qualidade de vida dos doentes, diminuem os custos inapropriados em saúde”. E vai mais longe ao considerá-los “essenciais num sistema nacional de saúde de qualidade, devendo ser prestados em continuidade”. Por outro lado, em consequência desta portaria, temos a circular normativa n.º 1/2017/CNCP/ACSS de 12 de janeiro deste ano que nos vem dizer, de uma forma muito objetiva, qual será o planeamento de desenvolvimento destes cuidados continuados e paliativos para este biénio de 2017/2018.
JM | O movimento propõe 10 ideias solidárias para acompanhar pessoas em fim de dia, doentes ou dependentes. Consideram ser uma resposta válida perante as necessidades dos doentes para quem a eutanásia é o caminho?
MSE | Sem dúvida! O verdadeiro caminho são as ideias solidárias. São conhecidos casos nos media de idosos que se encontram marginalizados nas suas próprias famílias. Isto é muito grave e sinal de grande egoísmo, o que origina, em situações-limite, pedidos de eutanásia, o que é humanamente compreensível. O grande desafio é a mudança de paradigma da relação com o outro. Precisamos de voltar a humanizar a sociedade pois isso é que é próprio de uma sociedade verdadeiramente evoluída. É aqui que reside a sustentabilidade e ecologia humana.
JM | Ouvimos o Dr. Germano de Sousa, ex- -bastonário da Ordem dos Médicos falar recentemente em listagens com nomes de médicos que pratiquem eutanásia… Que outras formas poderão garantir a transparência na prática da eutanásia, caso seja aprovada?
MSE | Por mais normas que venham a existir, fruto de um avanço nesta lei, será muito difícil falar em garantia da transparência. Mesmo a nível do debate, os conceitos que veem ao de cima são extremamente subjetivos e, do ponto de vista legislativo, vão permanecer subjetivos. O conceito de dor intolerante é disso exemplo: aquilo que é intolerante para mim pode não ser para a pessoa que está ao meu lado.
JM | Falta debate a esta questão?
MSE | Falta debate, reflexão e aprofundamento destas questões. Os conceitos de dignidade humana, liberdade pessoal e autonomia devem ser devidamente esclarecidos junto da população. As pessoas têm de perceber aquilo que é a verdadeira e a falsa compaixão. Estamos a colocar o assunto de forma fria. Somos pessoas, não somos objetos. A resposta ao problema não está em eliminar a pessoa que sofre, mas sim o seu sofrimento.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.