A Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia (SPNR) organiza, entre os dias 1 e 4 de junho, o XIII Congresso Nacional de Neurorradiologia, que este ano vai homenagear Egas Moniz pelos 90 anos desde a realização da sua primeira angiografia cerebral. O Congresso Nacional, que terá lugar em Estarreja, está integrado na primeira edição da Brain Week – Semana do Cérebro e da Neurorradiologia. Em entrevista ao Jornal Médico, o presidente da Brain Week e vice-presidente da SPNR, Pedro de Melo Freitas, salienta o programa atrativo do encontro e reforça a importância dos neurorradiologistas na “linha da frente” do combate àquela que é a principal causa de morte em Portugal: o acidente vascular cerebral (AVC).
JORNAL MÉDICO | O que deve, a Medicina portuguesa e mundial – e muito em particular a Neurorradiologia – a Egas Moniz?
PEDRO MELO FREITAS | Egas Moniz foi um dos vultos maiores da Medicina universal do século XX, designadamente pelos trabalhos de investigação na área da Neurociência, catapultando-a para um patamar de desenvolvimento científico que despoletou e consagrou, nas décadas seguintes, o reconhecido rumo de diversas especialidades médicas, entre as quais a atual Neurorradiologia diagnóstica e terapêutica. Se é unânime que o neurocientista marcou a história da Medicina portuguesa com as suas investigações no âmbito da Neurologia e da Psiquiatria, assim como da Neurocirurgia – tendo sido inclusive laureado com o Nobel da Medicina e da Fisiologia, com um procedimento cirúrgico posteriormente abandonado –, porventura mais unânime (e muito atual) é o reconhecimento do seu contributo para a Medicina Universal, com o desenvolvimento técnico-científico e a realização da primeira angiografia cerebral, naquela longínqua "tarde inesquecível" (in "Confidências de Um Investigador Científico", Egas Moniz) do dia 28 de Junho de 1927, no Hospital de Santa Marta, em Lisboa. Tal feito, valer-lhe-ia o justo reconhecimento da comunidade científica com a atribuição do Prémio de Oslo em 1945, antecipando, mas contribuindo com a necessária visibilidade investigacional científica, o percurso para o Nobel, em 1949. De facto, volvidos 90 anos, a angiografia cerebral primordial de Egas Moniz, aparte o desenvolvimento tecnológico subjacente, permaneceu como procedimento médico diagnóstico executado por médicos neurorradiologistas em todo o mundo até aos nosso dias, tendo sido progressivamente adaptado para técnicas de terapêutica endovascular – como por exemplo, a embolização de aneurismas, de malformações artério-venosas e a terapêutica do acidente vascular cerebral (AVC) na fase aguda – fortalecendo a contribuição do Mestre para a Medicina da atualidade, salvando vidas humanas em número cada vez mais significativo, como bem demonstram os estudos multicêntricos e as recomendações dos organismos de saúde mundiais. Por tudo isto, Egas Moniz assume-se, nos nossos dias, como um visionário da Medicina e um dos pioneiros da Neurorradiologia.
JM | O que mudou, desde a realização da primeira angiografia cerebral – técnica de que Egas Moniz é “pai” – até aos dias de hoje?
PMF | O desenvolvimento tecnológico relacionado com a Medicina incidiu em três vertentes essenciais para a realização dos estudos diagnósticos angiográficos e tratamentos associados: os equipamentos de Rx (com destaque das ampolas/fontes emissoras) e respetivas mesas de angiografia, atualmente rotacionais e permitindo abordagens multiplanares, assim como a subtração digital do osso na imagem médica final (angiograma), com uma elevada qualidade/ resolução espacial e temporal, assim como em tempos de aquisição ultrarrápidos, comparativamente aos angiogramas primordiais; os produtos de contraste injetados nos vasos para permitirem a opacificação dos mesmos, nos primeiros tempos à base de iodeto de sódio, depois de torotraste, e atualmente utilizando substâncias químicas relativamente inócuas e com muito maior opacificação dos vasos; por último, o desenvolvimento tecnológico dos cateteres (e dos microcateteres, essenciais na terapêutica endovascular), para acesso aos vasos cerebrais mais distais, quer em situações de diagnóstico ou de tratamento. Como neurorradiologistas executantes e fiéis depositários da angiografia de Egas, face ao exposto percebemos melhor – e a esta distância temporal – o mérito da inquestionável contribuição para a Medicina que protagonizou, com tão adversas condições técnicas disponíveis à época.
JM | Certamente que a Neurorradiologia é uma área marcada por uma escalada de complexidade e crescente inovação. Portugal tem acompanhado essa inovação? Isto é, atualmente, os doentes portugueses beneficiam dos avanços científicos e do mais atual estado da arte em Neurorradiologia?
PMF | A Medicina Portuguesa, no que à Neurorradiologia diagnóstica e terapêutica diz respeito, encontra-se na vanguarda do desenvolvimento/ inovação a nível mundial, assim como, de modo genérico, na disponibilização aos doentes das suas mais diversas técnicas disponíveis. Tal refere-se à neuro-angiografia (com a sua distribuição geográfica nacional, incluindo quase já a totalidade do território continental e insular em termos terapêuticos endovasculares), mas também em relação às técnicas de imagem médica mais avançadas por ressonância magnética, tomografia computorizada e ultrassonografia, utilizadas de modo generalizado no rastreio e estudo/investigação das diversas patologias do sistema nervoso central nas nossas unidades de saúde. Muitas haverá contudo a melhorar/disponibilizar de modo mais assertivo e eficaz, com as necessárias políticas de saúde a caminharem no sentido da uniformização da qualidade assistencial, nas vertentes diagnóstica e terapêutica, corrigindo assimetrias ainda existentes.
JM | Quais são, atualmente, os principais desafios para a Neurorradiologia portuguesa (quer em termos técnico-científicos, quer em termos organizativos/especialidade)?
PMF | A Neurorradiologia portuguesa assume como desafios as mesmas questões das restantes escolas da Neurorradiologia mundial, veiculando através dos órgãos internacionais a que pertence os seus ideais, pretensões e objetivos científicos e investigacionais, assim como organizacionais, no que às políticas mundiais de saúde na área das Neurociências diz respeito.
De facto, o papel central da Neurorradiologia na relação privilegiada de troca de saberes com a Neurologia, a Neurocirurgia e a Psiquiatria, entre outras, coloca esta especialidade médica, com raízes radiológicas, inevitavelmente no campo das Neurociências, fruindo todas elas da permanente e conjunta investigação no que de mais recôndito e ainda território-fronteira guarda o sistema nervoso central.
Em termos técnico-científicos diagnósticos destaco, por exemplo, a necessidade do desenvolvimento crescente dos estudos funcionais cerebrais/correlação anátomo-funcional, assim como da interpretação dos fenómenos de Neuroplasticidade, com aplicações progressivamente mais abrangentes no tratamento médico e compreensão de determinadas patologias, permitindo igualmente avançar em questões degenerativas (não esquecendo as crescentes patologias do envelhecimento) e de regeneração neuronal/recuperação das funções neurológicas perdidas, num desafio conjunto com outros necessários avanços na neurofisiologia e cirurgia de reabilitação.
Em termos terapêuticos, destaco o desafio motivado pelo tratamento dos AVC isquémicos em fase aguda, assistencialmente organizados através do sistema nacional das Vias Verdes, as quais têm despoletado uma cada vez mais pronta resposta diagnóstica e terapêutica dos neurorradiologistas nacionais em articulação com os colegas neurologistas/internistas das Unidades de AVC, motivando uma necessária e crescente investigação médica de novos dispositivos neuro-terapêuticos, com ainda melhores resultados na já emblemática e reconhecidamente alcançada diminuição das taxas de mortalidade e de incapacidade neurológica nacionais, sempre baseada numa contínua análise crítica dos modelos organizacionais. Por tudo isto, a Neurorradiologia portuguesa atual assume a enorme responsabilidade na herança do percurso que foi trilhado, por muitos ilustres, ao longo do último século, veiculando os mesmos ideais de progresso e motivação, em prol de uma práxis médica adaptada à melhoria contínua dos cuidados de saúde assistencial e contributo para melhoria de todos os indicadores da saúde.
Congresso homenageia Egas Moniz
No primeiro dia do XIII Congresso Nacional de Neurorradiologia, destaque para o Curso de Atualização em Neurorradiologia Clínica e para o VII Seminário de Física Médica, subordinado ao tema “Radiocirurgia do SNC: a Física Médica no suporte à imagem, diagnóstico e terapia”. Os índices de qualidade em radiocirurgia, a imagem multimodal em epilepsia e as incertezas no planeamento da radiocirurgia com partículas serão outros dos temas em discussão.
Ao longo do segundo dia, serão muitos os tópicos em análise, desde a importância da ressonância magnética no tratamento das doenças vasculares intracranianas e a abordagem das malformações vasculares congénitas, passando pela imagem nos conflitos neurovasculares. O dia ficará também marcado pela apresentação do livro “The legacy of Egas Moniz in present-day Neuroradiology – a global perspective, 90 years after the first cerebral angiography” e pela atribuição do Prémio Egas Moniz em Neurorradiologia.
No terceiro dia, destaque para a sessão sobre as novas recomendações da ESO para as tromboses venosas cerebrais e para a entrega do Prémio Paulo Mendo, que todos os anos distingue a melhor comunicação científica do Congresso. O Congresso Nacional de Neurorradiologia encerra ao quarto dia com o IIIº Curso Hands-On de Imagem Multimodal.
A reunião magna dos neurorradiologistas portugueses é organizada em parceria com o Brain Imaging Network (BIN), o Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde (ICNAS), a Universidade de Aveiro e UNAVE – Associação para a Formação Profissional e Investigação da Universidade de Aveiro. Conta ainda com o apoio institucional de dois parceiros internacionais: a Sociedade Brasileira de Neurorradiologia (SBNR) e a European Society of Neuroradiology (ESNR).
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.