Nestes últimos dias tem sido notícia o número de vagas que ficaram por preencher, o número de jovens Médicos de Família que não escolheram vaga e o número de utentes que vão permanecer sem médico de família. Há três grandes razões para isto acontecer e que carecem de correção urgente para conseguir cativar os jovens Médicos de Família.
Planeamento
O mapa de vagas para o internato deve corresponder à necessidade dessa área geográfica em Médicos de Família.
Os jovens Médicos de Família que concorreram a este concurso na sua grande maioria iniciou o seu internato em 2017. Olhando para esse mapa de vagas do concurso podemos ver que a ARS Norte e ARS Centro abriram em conjunto 264 vagas, quando neste concurso só tinham vagas para 175 novos Médicos de Família e que nas restantes 3 ARS (Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve) abriram 186 vagas quando neste concurso pretendiam contratar 284 novos Médicos de Família.
Sabemos que grande parte dessas necessidades está ligada à substituição de profissionais por motivos de reforma e que essa data é fácil de prever.
Esperar que centenas de médicos, com cerca de 30 anos de idade, a grande maioria já com família constituída e expectativa de ser manter próximo da sua residência faça uma mudança de centenas de quilómetros, do norte para o sul do país é utópico. Se as vagas do internato acompanhassem as necessidades futuras, seria dada uma real expectativa ao interno e tudo seria mais simples. Para isso é necessário garantir as condições de formação dos médicos nesses locais.
Carreira
Os atrasos nos concurso são outro fator de desmotivação dos jovens Médicos de Família. Cinco anos após se tornarem Assistentes Medicina Geral e Familiar, estão em condições de se candidatar ao grau de consultor à qual corresponde a remuneração de Assistente Graduado. No entanto, a demora desses concurso torna esses 5 anos, numa espera que chega aos 10 anos. (Também não tem ocorrido a devida progressão nos escalões intermédios.) Essa disfunção do normal desenrolar da carreira médica torna menos atrativa essa escolha, favorecendo outras alternativas.
Também a expectativa de integrar uma USF modelo B é cada vez mais um miragem. Em 2020 nenhuma USF transitou para modelo B, apesar de existirem várias com parecer técnico aprovado. Em 2021 há a promessa de transitarem 20, mas esse número não é suficiente para abarcar todas as USF com todos os requisitos cumpridos. O tempo desde a constituição de uma USF até à sua efetiva passagem a modelo B, pode facilmente chegar a 7 anos o que também desmotiva a criação de novos projetos. A facilitação na criação de USF em zonas com mais dificuldade em atrair profissionais, com expectativa de transição para modelo B assim que cumpram todos os requisitos também poderá ser uma medida que motive mais Médicos de Família a permanecer no SNS.
Condições de trabalho
As condições de trabalho, são outro vértice essencial para garantir a atratividade do SNS.
As atuais listas de utentes estão sobredimensionadas, principalmente para quem inicia a sua atividade profissional. Durante vários meses todas as consultas, são primeiras consultas. Mais demoradas, em que existem várias questões de saúde, novos diagnósticos. Todos conhecemos a dificuldade que muitas vezes existe em agendar uma consulta com a brevidade que desejávamos e isso está muito ligado ao número de utentes que cada médico de família tem. Ter entre 1700 a 1900, numa população cada vez mais envelhecida e com muitas doenças não é realista. Dificulta a acessibilidade, retira tempo necessário para a recolha de uma história clínica mais cuidada, provoca maior gasto em exames e medicamentos e facilita o erro médico. A reflexão que aqui se impõe será: Um utente dos 1900 utentes de um médico de família possui realmente médico de família ou apenas um médico atribuído?
Por outro lado cada vez mais a atividade médica está burocratizada, são inúmeros os papeis que diariamente temos de preencher, relatórios para segurança social, para prática desporto, para escola. Porque a criança está doente ou porque a criança já não está doente. Estas tarefas retiram o foco dos profissionais às questões clínicas. Diminuem o nosso tempo útil para a realização de consultas e realização de atividades preventivas ou curativas.
A falta de outros profissionais de saúde também é um fator crítico para a dificuldade em atrair novos Médicos de Família. Por um lado a falta de enfermeiros e secretários clínicos dificulta a criação de novas USF, por outro a falta destes profissionais, mas também de assistentes operacionais, nutricionistas, psicólogos dificulta e complexifica a nossa atividade. Um local de trabalho com equipa multidisciplinar completa e com capacidade de dar resposta às necessidades dos utentes será uma excelente motivação um Médico de Família.
Nas condições de trabalho há ainda que incluir as instalações. Há centenas de unidades que não foram construídas para serem centros de saúde, são edifícios adaptados, muitas vezes sem gabinetes suficientes, sem climatização. Que nem sempre têm o material necessário para a atividades diária, com recursos informáticos avariados ou obsoletos. Muito do cansaço no final de um dia de trabalho está relacionado com ineficiências dos edifícios, material ou aplicações informáticas.
Para além disso temos uma série de novas tarefas que vieram acrescer ao nosso dia-a-dia. Tarefas relacionados com covid, vigilância telefónica, declarações de alta, vacinação. Com certeza que todo este contexto contribuiu para uma menor adesão dos novos Médicos de Família. O dia-a-dia de um Médico de Família nos dias de hoje é muito diferente do habitual. Temos de cumprir serviço nas áreas covid, centros de vacinação e tudo isso são dias em que não estamos na unidade, as tarefas acumulam para o dia seguinte e os nossos doentes sentem isso, não os conseguimos ver nesse dia porque não estamos lá. Esta incapacidade de conseguir dar resposta a todas as exigências, o aumento das escalas, horas extraordinárias e trabalho ao fim de semana, também dificulta a adesão daqueles que até estariam dispostos a fazer dezenas de quilómetros diários e manterem-se no SNS. A necessidade de realização de trabalho suplementar, os fins de semana que agora são raramente sinónimo de descanso e de tempo em família dificulta a conciliação de um trabalho que obrigue a horas de tempo em deslocação.
Mas a realidade de hoje, não necessita de ser a realidade de amanhã. É necessário iniciar o planeamento de uma nova era para que toda a população, o país e os jovens médicos saiam a ganhar.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.