Paulo Andrade: “É preocupante que mais de 4/5 dos inquiridos afirme ter tomado antibióticos”
DATA
28/02/2023 12:15:18
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Jornal Médico
Paulo Andrade: “É preocupante que mais de 4/5 dos inquiridos afirme ter tomado antibióticos”

Paulo Andrade, Coordenador da Comissão Técnica Transversal da CUF pela Prevenção e Controlo de Infeção e Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA), faz a sua reflexão quanto ao estudo “Perceção sobre uso de antibióticos”, realizada pelo Centro de Estudos Aplicados. No seu entender são dados que “traduzem um deficit na formação de base e na educação para a saúde entre os portugueses”. Esta temática será explorada no evento “CUF Conference on Antibiotic Resistance”, dia 17 de março, no Auditório do Hospital CUF Tejo. 

Jornal Médico (JM) | Como surgiu e o que motivou esta parceria entre a CUF e a Fundação Calouste Gulbenkian, que resultou no evento “CUF Conference on Antibiotic Resistance” - dia 17 de março, no Auditório do Hospital CUF Tejo? 

Paulo Andrade (PA) | Desde há vários anos que a Fundação Calouste Gulbenkian desenvolve iniciativas no âmbito da resistência aos antimicrobianos e da prevenção e controlo de infecção, dos quais saliento, a título de exemplo, a iniciativa “STOP infeção hospitalar!”. Esta longa experiência, associada ao prestígio e reconhecimento da Fundação Calouste Gulbenkian na sociedade e em particular entre os profissionais de saúde tornam-na no parceiro ideal para o desenvolvimento de uma conferência dedicada a este tema. No âmbito da CUF, no rescaldo do impacto pela pandemia por COVID-19, notamos um maior interesse entre os profissionais pela prevenção e controle de infecção pelo que quisemos sensibilizar e aprofundar o conhecimento para esta temática, enfocando numa outra pandemia, mais silenciosa mas com muito maiores consequências no longo prazo: a resistência aos antibióticos. 

JM | O que nos pode dizer sobre a mortalidade e morbilidade diretamente atribuída à resistência aos antibióticos, segundo as últimas evidências? 

PA | Em estudo publicado na revista Lancet Infectious Diseases, estimava-se que só no espaço europeu, no ano de 2015, as bactérias resistentes a antibióticos teriam sido directamente responsáveis por mais de 600 mil infecções e mais de 33 mil mortes, para além da perda de mais de 800.000 anos de vida ajustados por incapacidade. Num artigo mais recente publicado na revista The Lancet, estimava-se que em 2019, a nível global, as infecções por bactérias resistentes teriam sido responsáveis por 1,27 milhões de mortes.

JM | E quais as resistências a antibióticos com maior impacto clínico? 

PA | Na Europa, as  Enterobacterales resistentes a cefalosporinas de 3.ª geração, no seu conjunto, são aquelas com maior impacto clínico em termos absolutos, seguidas do Staphylococcus aureus resistente à meticilina. No nosso país, as Enterobacterales produtores de carbapenemases têm vindo a ganhar importância crescente, dada a sua velocidade de disseminação, mortalidade associada e dificuldade extrema de tratamento. 

JM | Qual o contributo de fármacos não antibióticos para a emergência de microrganismos resistentes? 

PA | Os fármacos que favorecem o aparecimento de infecções motivam a prescrição de antibióticos e consequente emergência de resistências. Neste grupo colocamos à cabeça os imunossupressores como, por exemplo, os corticosteróides, quimioterápicos ou produtos biológicos imunomoduladores. Alguns fármacos menos óbvios, como por exemplo os inibidores da bomba de protões, também estão associados ao aparecimento de infecções. Nos últimos anos, têm-se somado estudos que sugerem que exposição a determinados fármacos não antibióticos, como sejam anti-inflamatórios não esteróides, b-bloqueadores e anti-psicóticos favorecem a emergência e disseminação de resistências entre os microorganismos.    

JM | Quais os principais mecanismos de resistência antimicrobiana e quais as principais técnicas microbiológicas para diagnóstico do patógeno e da respetiva resistência? 

PA | Em traços gerais, podemos dividir os principais mecanismos de resistência em 3 grandes grupos: aqueles que destroem activamente os antibióticos, aqueles que impedem que os antibióticos atinjam concentrações eficazes no seu lugar-alvo e aqueles que alteram a estrutura do lugar-alvo dos antibióticos, tornando-os ineficazes. Existem diferentes técnicas microbiológicas para identificação de resistências aos antimicrobianos que, simplificando, podemos agrupar em métodos  convencionais fenotípicos (manuais ou automatizados), moleculares ou de espectrometria de massa, aos quais se associaram, mais recentemente, as técnicas de sequenciação genómica.

JM | A conferência conta com o apoio científico com Grupo de Investigação e Desenvolvimento em Infeção e Sépsis, que recentemente divulgou os dados do estudo “Perceção sobre uso de antibióticos”, realizada pelo Centro de Estudos Aplicados, com o objetivo de perceber o estado atual do comportamento dos portugueses em relação ao consumo de antibióticos?

PA | O consumo de antibióticos aumentou 10% em apenas 2 anos; 83% dos portugueses afirmou tomar antibióticos. Mulheres são quem mais o faz;  77% dos inquiridos não consegue identificar o antibiótico tomado, com particular destaque para os homens e a população envelhecida; 1/4 dos inquiridos não segue as indicações de prescrição, o que representa uma melhoria face aos valores de 2020, período em que este incumprimento foi assumido por quase 1/3 dos portugueses.

JM | Como interpretar e explicar estes resultados? 

PA | Mais do que consumo objectivo de antibióticos, item no qual estamos na média europeia no sector hospitalar e abaixo da média europeia no ambulatório, estes resultados traduzem as percepções que os cidadãos têm sobre o uso destes fármacos. Neste contexto , é preocupante que mais de 4/5 dos inquiridos afirme ter tomado antibióticos, dos quais a grande maioria não saiba sequer identifica-lo e com uma adesão à indicação de prescrição relativamente baixa, embora em melhoria. Quanto a mim, estes dados traduzem um deficit na formação de base e na educação para a saúde entre os portugueses.

JM | Podemos esperar  que esta conferência inspire propostas e iniciativas que revertam e/ ou melhorarem estes números? 

PA | Esperamos que sim. A conferência tem uma forte componente dedicada à prescrição e stewardship antibiótico, com a presença de autoridades nacionais e internacionais nesta área. Estamos confiantes que  sensibilizará os profissionais de saúde para esta temática e que os motive para a implementação de projectos que visem a melhoria de práticas e atitudes nas suas unidades.

JM | Haverá dois fortes painéis dedicados a estratégias de prevenção e controlo da resistência aos antibióticos. No seu ponto de vista, quais a linhas de investigação mais promissoras? 

PA | A investigação neste âmbito é fundamental, dado que uma parte importante das recomendações actuais baseia-se em evidência fraca e opinião de peritos. Sendo muito difícil prever que linha de investigação será mais frutuosa, é de salientar que a sequenciação genómica é muito promissora no que toca à caracterização de populações de microorganismos e de dinâmicas de surtos. Por outro lado, os novos métodos de vigilância epidemiológica semi-automáticos ou automáticos com incorporação de inteligência artificial concederão um conhecimento muito mais aprofundado da realidade da infecção nosocomial nos hospitais. Finalmente, o desenvolvimento e aplicação das novas técnicas laboratoriais que encurtem o tempo até identificação de agente infeccioso, permitirão a otimização, com consequente diminuição de exposição a antibioterapia de largo espectro.

 

Saiba mais acerca da CUF Conference on Antibiotic Resistance, aqui.

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Editorial | Joana Torres
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