Os últimos meses foram vividos por todos nós num contexto absolutamente anormal e inusitado.
Atravessamos tempos difíceis, onde a nossa resistência é colocada à prova em cada dia, realidade que é ainda mais vincada no caso dos médicos e restantes profissionais de saúde. Neste âmbito, os médicos de família merecem certamente uma palavra de especial apreço e reconhecimento, dado o papel absolutamente preponderante que têm vindo a desempenhar no combate à pandemia Covid-19: a esmagadora maioria dos doentes e casos suspeitos está connosco e é seguida por nós.
Como sempre, estamos desde o início na linha da frente: nunca virámos as costas, nunca nos escondemos, nunca fechámos as portas, nunca deixámos os nossos doentes para trás. Em resumo, provámos mais uma vez o nosso valor e excedemo-nos a cada dia.
Contudo, apesar de todo o empenho e dedicação, é cada vez mais difícil desempenhar as nossas funções de forma digna e eficaz. Por mais meritório que seja o trabalho dos médicos de família, tantas vezes feito de forma silenciosa e fruto de um enorme sacrifício, não podemos estar sozinhos nesta luta.
Estamos afogados num mar de tarefas burocráticas que nos consomem, nos angustiam e nos retiram tempo para responder às verdadeiras necessidades dos nossos utentes. Precisamos de reduzir, eliminar ou redistribuir essas tarefas não médicas para nos recentrarmos naquilo que só nós sabemos e podemos fazer: cuidar de quem nos procura e precisa de nós.
A exaustão é já uma realidade para muitos dos colegas e tememos que esta sobrecarga de trabalho esteja a atingir um limite que será insustentável para os médicos de família e, consequentemente, para todo o sistema de saúde. Em paralelo, os nossos utentes também estão insatisfeitos e têm dificuldade em perceber por que deixaram de ter os cuidados que merecem e de que necessitam. Neste momento, existe um risco real de colapso dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal, o que, inevitavelmente, terá consequências gravíssimas a nível da capacidade de resposta hospitalar.
Todos reconhecemos que, na fase inicial da pandemia, foi necessário reajustar drasticamente o funcionamento dos serviços de saúde, sendo que as unidades dos cuidados primários não foram exceção. Contudo, o conhecimento evolui e, depois do embate inicial, era mandatório ter reorganizado a resposta à pandemia de modo a permitir conciliar as tarefas relacionadas com a Covid-19 com todas as outras necessidades em saúde que, obviamente, não desapareceram. Pouco foi feito e apenas temos assistido à adoção de várias medidas tomadas de forma avulsa e muitas vezes descoordenada, sobrecarregando quem está no terreno e ignorando que é impossível que as mesmas pessoas mantenham todas as atividades que antes realizavam e ainda consigam dar resposta a uma miríade de novas solicitações. Importa cuidar de quem cuida e tal não tem acontecido.
O nosso apelo é simples: deixem-nos ser médicos de família novamente e não somente médicos da pandemia.
Ouçam a nossa voz, escutem o que temos para dizer.
É urgente mudar. Chegou a altura de afirmar, de uma vez por todas, o valor na nossa especialidade e de assumir, sem medos, o seu papel central na saúde em Portugal.
Tal como ouvimos muitas vezes, somos, sem dúvida, a pedra basilar de um sistema de saúde que queremos cada vez mais justo, eficiente e abrangente. Contudo, não basta que nos considerem, e bem, o alicerce fundamental do Serviço Nacional de Saúde: é necessário que essa afirmação seja consequente, que tenha validade e aplicação prática no dia a dia da Saúde em Portugal. A Medicina Geral e Familiar (MGF) necessita que lhe sejam dadas as condições necessárias para que prossiga o seu meritório e reconhecido trabalho em prol da população.
Esta necessidade de mudança foi também sentida na APMGF. Todavia, há algo que permanece inalterado: o nosso compromisso de defesa intransigente da MGF, trabalhando sempre para o desenvolvimento e melhoria contínua dos CSP em Portugal, possibilitando a prestação de cuidados de saúde de excelência a todos os que deles precisam.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.