Escassez de material essencial, recusa de acesso à inovação e cirurgias adiadas
DATA
03/07/2015 11:51:18
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Jornal Médico
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Escassez de material essencial, recusa de acesso à inovação e cirurgias adiadas

hospital troika
O debate sobre o impacto das medidas decorrentes da intervenção da troika na qualidade dos cuidados prestados é recorrente, não sendo possível determinar, com base em dados fidedignos se erra quem afirma que foi negativo, quem garante o contrário, ou mesmo, quem percepcione que não terá ocorrido qualquer impacto digno de nota. Um impasse que a equipa de investigadores do ISCTE-IUL procurou resolver através do inquérito dirigido aos médicos com o objectivo de conhecer a percepção destes profissionais das mudanças ocorridas entre 2011, ano em que o País foi alvo de resgate por parte da troika e 2013.

Em concreto procurou-se saber se os médicos consideram ter havido impacto na acessibilidade da população aos serviços de saúde e se os ganhos de eficiência e eficácia percepcionados (ver peça anterior) permitiram melhorar a prática clínica. É de notar, que não é possível aferir que medidas políticas em concreto justificam estas respostas, nem se as mesmas decorrem das condições negociadas no memorando.

O impacto da crise na actividade médica

A primeira e mais óbvia dúvida que se levanta relativamente a eventuais impactos das medidas adoptadas para a Saúde no âmbito do memorando de entendimento (MdE), é a das repercussões no exercício da actividade médica. Isto é, se se registaram interferências na prestação habitual de cuidados de saúde como consequência das medidas de contenção da despesa.

As respostas confirmam as denúncias que dia-sim, dia-não preenchem os noticiários. As pressões para poupar interferem de facto na prática clínica, a vários níveis e com diferentes gradações.

De acordo com os médicos inquiridos, o tipo de interferência no trabalho médico mais sentido pelos profissionais “está relacionado com faltas recorrentes de material nas instituições. A situação é particularmente visível no SNS, chegando a 59,8% dos médicos que trabalham no sector não hospitalar (CSP e cuidados continuados) e a 44,2% dos médicos hospitalares, mas igualmente presente no sector privado: 28,5% nos consultórios e clínicas e 32,5% nos hospitais”, lê-se no relatório cujas conclusões foram divulgadas há dias.

Faltas ou problemas com material informático e consumíveis de escritório, bem como de material descartável como luvas, agulhas, sondas ou pensos, foram algumas das lacunas que passaram a ser comuns após 2011.

A estas, junta-se a percepção, também amiúde denunciada na praça pública, de que nos hospitais públicos é recusado o acesso a tratamentos inovadores, situação relativamente à qual 16,5% dos médicos que responderam ao inquérito afirmaram ter conhecimento directo ou indirecto. Uma situação menos frequente mas ainda importante nos hospitais privados, onde essa percepção foi assumida por 10,6% dos inquiridos, que destacaram as terapêuticas relacionadas com as áreas da oncologia e diabetes, como as mais afectadas.

Já nos cuidados de saúde primários (CSP), as situações mais comuns de pressão percepcionadas pelos médicos foram no sentido de se gastar menos com os doentes (24,4%) particularmente ao nível da requisição de meios complementares de diagnóstico e terapêutica e da prescrição de alguns medicamentos (22%), particularmente antibióticos, antidiabéticos e anti-hipertensores, que configuram, apontam os autores, “situações de constrangimento à livre decisão médica na prescrição de medicamentos e não necessariamente o incentivo à prescrição de genéricos”.

Uma análise mais “fina” dos resultados permite identificar as “queixas” em função da especialidade. Assim, no que se refere às faltas recorrentes de material, referidas por 37,9% dos inquiridos (média do conjunto das especialidades), elas foram apontadas por 54,4% dos médicos de família, 52,9% dos anestesiologistas. Valores elevados neste parâmetro registaram ainda a Medicina Física e de Reabilitação (MFR), a Urologia, a Radiologia a Medicina Interna a Cirurgia Geral e a Otorrinolaringologia.

As pressões para gastar menos com os doentes tiveram maior expressão, como se viu, na MGF, mas também registaram valores significativos em Oncologia, MFR, Anestesiologia, Ortopedia e Medicina Interna.

Já no que se refere a medicamentos, a pressão para não prescrever foi particularmente sentida na área da Oncologia e da MGF, assumindo ainda expressão importante na Anestesiologia, Cirurgia Geral, Urologia, MFR e Pneumologia.

Finalmente, a recusa de acesso a tratamentos inovadores foi mais expressiva nas áreas da Urologia (52,5%), Oncologia (46,5%) e Cardiologia (26,4%).

No relatório, os investigadores do ISCTE-IUL destacam o facto de cerca de 40% dos médicos hospitalares afirmar “já ter sido confrontado com a falta de medicamentos no tratamento adequado dos doentes”. Uma situação mais frequente nos hospitais PPP (cerca de 54%) do que nos do sector privado, convencionado e lucrativo, que ainda assim apresentam uma percentagem elevada (33%).

Expressivo é também o número de médicos hospitalares que afirmou ter estado envolvido em cirurgias adiadas (30%) e em técnicas invasivas impedidas por falta de material disponível (23%).

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