(Nota: notícia actualizada com resposta do Ministério da Saúde ao nosso pedido de esclarecimento e de acesso às decisões, recomendações ou outros documentos que tenham sido produzidos no sentido de dar cumprimento à cláusula do acordo celebrado entre a Administração Central do Sistema de Saúde (em representação do governo português) e o Governo Cubano em 30 de Abril último, através da qual se pretendem impedir deserções de profissionais "fornecidos" (sic) por Cuba) Foi necessária uma queixa na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), apresentada pelo jornal i, para que o Ministério da Saúde (MS) entregasse, pela primeira vez, cópia dos acordos celebrados com o governo cubano para a contratação de médicos para os cuidados de saúde primários. Da leitura dos documentos, ficou-se a saber que desde o primeiro convénio, celebrado em Junho de 2009, era ministra Ana Jorge e o último aditamento, acordado a 30 de Abril último, ambos assinados em Havana, o Estado português terá pago cerca de 12 milhões de euros aos Serviços Médicos Cubanos (SMC). Serviços que, por sua vez, tutelam a “sociedad mercantil cubana Comercializadora de Servicios Medicos Cubanos, SA” com a qual os médicos do país de Fidel Castro estabelecem contratos de prestação de serviços para exercerem nos quatro cantos do mundo, com particular incidência em África e na América do Sul. Destes, resulta imediato que os médicos cubanos a trabalhar em Portugal estão obrigados a normas que violam direitos fundamentais consagrados na Constituição e em todos os tratados que consagram direitos humanos nos quais o nosso país é parte. É um negócio em que se fornecem (é o termo utilizado) médicos que recebem “trocos” por um trabalho que rende milhões. De acordo com números das próprias autoridades cubanas, 64 mil trabalhadores, a maioria dos quais médicos, estão a trabalhar no exterior, estimando-se que as receitas anuais deste tráfico humano se aproximem dos seis mil milhões de dólares. A redacção do primeiro acordo, em que Portugal se fez representar pelo actual presidente do conselho directivo da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, Luís Cunha Ribeiro, começa por fundamentar a medida com a consciência das partes de que “a saúde constitui um direito dos povos cubanos e português”. Um direito para cuja realização Cuba expressava a sua disponibilidade para prestar contributo face ao “interesse manifestado pelo MS da República Portuguesa em, por um período de tempo definido, contratar serviços médicos cubanos para a prestação de cuidados primários em áreas geográficas com carências de médicos”, lê-se no documento a que o nosso jornal teve acesso. [caption id="attachment_9778" align="alignnone" width="300"] Rafael Oliva Avila, um dos médicos cubanos da primeira vaga de profissionais contratados ao abrigo do acordo de 2009 entre a ACSS e o governo de Havana foi colocado em Agosto na extensão de Alqueva, centro de saúde (CS) de Portel.[/caption] Ao todo, 44 especialistas em Medicina Geral e Familiar (MGF), “com mais de 10 anos de experiência no exercício da sua profissão e com um mínimo de 3 anos de experiência na prestação de cuidados no estrageiro” – 25 destinados a seis centros de saúde do Alentejo e os restantes 19 para cinco unidades dos cuidados de saúde primários (CSP) algarvios. Ficou então combinado que cada médico prestaria serviço na unidade de saúde que lhe fosse destinada num total de 64 horas semanais: 40 em consultas de MGF e domicílios e 24 a serem prestadas em serviços de urgência. Em troca, Portugal pagaria 5.900 euros/mês por médico. Ajustado o montante a uma realidade laboral “normal” em que o trabalhador tem direito a subsídio de férias e de Natal, o valor por hora de trabalho pago a cada médico cubano foi de 19,75 euros. Em Cuba, um médico ganha entre 19 e 34 euros por mês. Alimentação… em marmita fornecida pela Misericórdia Em 2009, Portugal comprometeu-se a garantir, entre outras condições, a alimentação dos profissionais em condições idênticas às verificadas para os médicos portugueses. Condições “idênticas” que o nosso jornal, numa reportagem realizada em Portel, em Janeiro de 2010, veio a revelar que se consubstanciavam no fornecimento de refeições em marmitas, a título gratuito, pelos serviços de apoio domiciliário da Santa Casa da Misericórdia local. O mesmo relativamente à habitação em que Portugal ficou de “coordenar com as ARS a as autoridades locais, no que diz respeito ao apoio à habitação, para evitar movimentos de arrendamento especulativo”. Ora, a verdade é que em muitas situações foram as autarquias que suportaram esses custos, cedendo habitações aos médicos. A expensas do MS ficou ainda o pagamento das viagens de e para Cuba dos “cooperantes”, para gozo de férias, bem como os custos do transporte inicial. De acordo com os termos do “contrato”, os pagamentos pelos serviços prestados pelo contingente cubano são efectuados trimestralmente pelas respectivas ARS, “nos últimos dez dias de cada trimestre, por depósito na conta e banco designados pelos SMC”. Estipulando-se ainda que os custos das transferências bancárias são da responsabilidade de cada ARS. Contas feitas, entre Agosto de 2009 e Dezembro de 2011, Havana terá recebido cerca de 7,5 milhões de euros. [caption id="attachment_9779" align="alignnone" width="300"] Carlos Valiente, outros dos “pioneiros”, pertencia à junta directiva do Grupo Nacional de Medicina Familiar de Cuba, por nomeação do ministro de Saúde Pública.[/caption] A revisão de 2011: menor carga horária e “desconto” no preço/médico A 30 de Dezembro de 2011 o acordo foi renovado e introduzidas algumas alterações. Os 39 médicos então “adjudicados” passariam a realizar apenas 12 horas semanais em serviço de urgência para além das 40 em consultas e domicílios prestados no centro de saúde. Tudo por 4.230 euros/mês por cabeça (17,43 euros por hora, partindo do pressuposto considerado atrás). A partir de então, os profissionais passaram a estar isentos do pagamento de taxas moderadoras nos CSP. Na vigência deste acordo, o Estado terá depositado nos cofres cubanos cerca de quatro milhões de euros. Portugal esteve representado no negócio pelo actual presidente da ACSS, João Carvalho das Neves. Que também representaria o país na última revisão, assinada em Abril último. O acordo actualmente em vigor prevê a contratação de um número máximo de 100 médicos até 2016, 18 dos quais, segundo informações veiculadas pela ACSS já estarão em funções estando prevista a chegada de mais 51 em Setembro. Em nota emitida na sequência da divulgação, pelo i dos contratos com Cuba, a ACSS explica que “destes profissionais de saúde, 26 destinam-se a substituir médicos cubanos que deixaram de trabalhar em Portugal e 25 virão reforçar o SNS, assegurando a prestação de cuidados de saúde primários a mais 47.500 utentes”. Uma das novidades da nova versão é o “aligeirar” da exigência que vigorava até então de “10 anos de experiência no exercício da sua profissão” e de “um mínimo de 3 anos de experiência na prestação de cuidados no estrageiro” para apenas “5 anos de experiência”. Outra das alterações introduzidas em Abril foi a da carga horária semanal, que desce para as 44 horas, nas quais se inclui, se necessário, a “prestação de serviço de urgência ou similar nos termos da legislação vigente em Portugal”. A partir de Abril, o Ministério da Saúde terá ainda que garantir aos profissionais o pagamento do subsídio de alimentação de acordo com a tabela em vigor para a Administração Pública. O que constitui uma verdadeira novidade, já que nos acordos anteriores, a lei portuguesa nunca foi utilizada como referencial quando o que estava em causa eram direitos dos trabalhadores. Utilizando a metodologia adoptada atrás para o cálculo do valor da hora de trabalho, chegamos aos 20,6 euros. Nesta última revisão do acordo, o MS assume mais despesas do que as que assumira anteriormente. De facto, fica formalmente obrigado a pagar as quotas mensais devidas pelos clínicos cubanos à Ordem dos Médicos (segundo fontes do MS era já isso o que acontecia, muito embora não estivesse previsto no acordo) e a garantir um abono em ajudas custo que cubra todos os gastos dos profissionais “relacionados com alimentação, habitação e outros gastos nos termos da legislação em vigor para a Administração Pública”. Deserções de médicos salvaguardadas em Abril Na nota publicada em reacção à notícia do i, os responsáveis da ACSS afirmam que a renovação do acordo a 30 de Abril último, “veio dar resposta a situações que não estavam suficientemente acauteladas como a substituição dos profissionais de saúde cubanos antes do prazo”. A ACSS não esclarece, contudo, se a necessidade de substituição “antes do prazo” resulta de os profissionais regressarem a Cuba por vontade própria (situação que, como se verá adiante constitui uma infracção gravíssima de acordo com o regulamento disciplinar a que estão sujeitos os profissionais cubanos a exercer no exterior) ou de aproveitaram o facto de estarem em Portugal para escapar à ditadura castrista. Segundo o i, 10 médicos terão seguido esta segunda via, muito concorrida nos países com os quais Cuba tem estabelecido acordos semelhantes. Pese o lapso, a nova versão do acordo deixa algumas pistas. De facto, o artigo XII (aditado), onde se regulam “Outros aspectos do Acordo”, estabelece que “os profissionais cubanos a exercer funções em Portugal tal como os médicos especialistas em MGF a serem fornecidos pelos SMC só poderão exercer funções em território português enquanto o presente acordo estiver vigente e para esse efeito o MS da República Portuguesa, procurará articular-se com os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Administração Interna no sentido de que os vistos venham a permitir esta componente do Acordo”. Solicitado formalmente o acesso às decisões do Governo produzidos no sentido de dar cumprimento a esta cláusula contratual, recebemos há momentos a seguinte resposta: A IV renovação do Acordo de Cooperação para a prestação de serviços médicos cubanos entre os Serviços Médicos Cubanos da República de Cuba e a Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. do Ministério da Saúde da República Portuguesa foi assinada em 30 de Abril último. Com vista à sua implementação global, a ACSS, I.P. tem realizado reuniões de coordenação com as Administrações Regionais de Saúde, alertando para a necessidade de uma efectiva aplicação de todas as regras incluídas no articulado do acordo, em particular o seu artigo XII, bem como efectuado uma estreita articulação com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério da Administração Interna (Serviço de estrangeiros e Fronteiras). Adicionalmente e a nível interno, a ACSS, I.P. encontra-se em processo de elaboração de um manual de procedimentos com o objectivo de assegurar uma integral aplicação do acordo, incluindo na parte respeitante ao regime de incompatibilidade. As razões que justificam o acautelar da situação são parcialmente esclarecidas nesta última versão do acordo: “Os SMC devem proceder à substituição dos médicos que cessem funções ao abrigo do presente acordo por causa injustificada ou indisciplina”. Um contrato sui generis Pesem os esforços desenvolvidos para obter uma cópia dos contratos estabelecidos entre os SMC e os médicos fornecidos (sic) ao Ministério da Saúde português, não nos foi possível alcançar esse objectivo. Na reportagem que realizámos em 2010, quando questionados relativamente a questões salariais e a cargas horárias, os médicos contactados pelo nosso jornal recusaram revelar os valores que recebiam pela actividade que desenvolviam em Portugal, ou quais as contrapartidas entregues ao Estado cubano. Garantiram, porém, que aquilo que recebiam era “suficiente para todas as necessidades, para viver com dignidade” e que a carga horária (à época 64 horas semanais) não constituía um problema: “estamos habituados a trabalhar e não nos queixamos. Sabemos que se tem falado sobre este assunto, que chegou inclusive aos portugueses através da televisão e que é um tema sensível, mas para nós está tudo bem”, testemunharam então. Não se sabe, pois, quanto recebem. Houve quem garantisse que seriam então cerca de 300 euros mensais. E que hoje receberão um pouco mais. Sem que no entanto haja provas que sustentem a afirmação. Todavia, se a metodologia adoptada por cá tiver sido a mesma seguida no Brasil e em outros países sul-americanos, pode-se afirmar com segurança que cabe à “sociedad mercantil cubana Comercializadora de Servicios Medicos Cubanos, SA” (CSMC) contratar os médicos enviados em serviço para o exterior. E é também esta sociedade que deposita mensalmente nas contas dos médicos os valores acordados para o fornecimento de serviços. Uma parte do salário é depositada numa conta bancária em nome do médico aberta no país para onde foi enviado e outra numa conta poupança em Cuba, que poderá ser aberta em nome do médico ou de um familiar por ele indicado, em pesos convertíveis – em Cuba correm duas moedas, o peso cubano (CUP) e o peso convertível (CUC), que como o nome indica, é passível de ser trocado por moeda estrangeira. Nas transacções cambiais, 1 CUC tem o mesmo valor que 1 dólar norte-americano. Já o 1 CUP equivale a 0,043 dólares norte-americanos). O contrato celebrado em Setembro de 2013 com a médica Ramona Matos Rodriguez, enviada para o Brasil ao abrigo do programa Mais Médicos (ao qual aderiram também alguns clínicos portugueses) foi tornado público após aquela profissional de saúde ter decidido pedir asilo político às autoridades brasileiras por discordar da quantia que lhe era paga por Havana (o Brasil oferece cerca de 3.300 euros/mês ao abrigo deste programa). No documento, a que o nosso jornal teve acesso, a CSMC compromete-se a pagar mensalmente à profissional de saúde o equivalente a mil dólares norte-americanos da seguinte forma: 600 CUC na conta poupança em Cuba (aos quais são subtraídos 50 CUC de taxa) e o equivalente, em reais, a 400 dólares, numa conta aberta em nome da médica num banco brasileiro. Nos termos do contrato, a CSMC compromete-se ainda a pagar um suplemento inicial para custos de instalação num montante a definir em função do local em que a médica fosse colocada e as quotas anuais obrigatórias ao Conselho Regional de Médicos do Brasil. Fica completamente vedado o exercício de quaisquer outras funções ou actividades, remuneradas ou não, distintas das definidas no contrato. Os médicos comprometem-se ainda a cumprir o regulamento disciplinar dos trabalhadores civis cubanos que prestam serviços no exterior e a reconhecer que os representantes da Direcção da Missão Médica Cubana no Brasil estão investidos de poderes suficientes para actuar em seu nome e em sua representação perante as autoridades brasileiras. Para além da tutela da Missão Médica Cubana, os médicos estão ainda subordinados a uma designada Brigada Médica Cubana no Brasil, à qual têm que comunicar com antecedência entre outras decisões, a de receber a visita de familiares ou amigos na localidade onde prestam serviços. Um regulamento disciplinar… castrense Todos os trabalhadores cubanos em missão no exterior estão subordinados ao “Reglamento Disciplinario para los Trabajadores Civiles Cubanos que Prestan Servicios en el Exterior como Colaboradores”, cuja última actualização foi aprovada a 29 de Março de 2010, pelo ministro cubano do comércio exterior e investimento estrangeiro cubano, Rodrigo Malmierca Díaz. A leitura da norma choca um leitor menos prevenido, pelo inusitado de algumas das regras impostas aos trabalhadores pelo regime dos irmãos Castro, que abrangem desde o como se deve vestir até à higiene doméstica. Está disponível na internet, pelo que o leitor que pretenda conhecê-las com maior detalhe, facilmente as encontrará. Deixamos, a título de exemplo uma meia dúzia, cujo conteúdo permite perspectivar o todo. Todos os trabalhadores no exterior “devem informar o seu chefe imediato [há chefes de colectivo, grupo, brigada e de missão] das suas relações amorosas com nacionais ou estrangeiros, residentes ou não no país onde prestam serviço e se for esse o caso, informar com antecipação suficiente da sua intenção de contrair matrimónio”. Mesmo uma simples amizade deve ser bem ponderada. Entre outras razões, porque constitui infracção “manter relações com nacionais ou estrangeiros, residentes no país onde se encontram, cuja conduta não esteja de acordo com os princípios e valores da sociedade cubana”. Muito menos com “cidadãos cubanos ou nacionais do país onde se encontrem que assumam posições contrárias ou hostis à revolução cubana”. Receber visitas em casa sem prévia autorização superior é impensável, especialmente se se tratarem de colegas “que abandonaram o cumprimento da missão ou se aproveitaram da mesma para abandonar definitivamente o território cubano”. Ou se os visitantes “discordarem do modo como se devem comportar os cidadãos cubanos no exterior”, promovendo um modo de vida diferente. Constitui infracção disciplinar, entre muitas outras, participar em actos públicos de carácter político ou social sem a devida autorização… E emitir opiniões aos órgãos da imprensa, rádio ou televisão que comprometam a colaboração cubana ou sobre situações internas do local de trabalho ou do país em que se encontrem sem autorização e instruções prévias. Tal como em Cuba, também no exterior os trabalhadores cubanos só podem viajar entre localidades ou províncias se previamente autorizados pelas autoridades competentes, pelo que constitui infracção grave não cumprir o “sistema de localização estabelecido no país onde se encontrem”. As sanções a que estão sujeitos os infractores vão desde a simples “admoestação pública perante o seu colectivo de trabalhadores ou dos funcionários da missão estatal” a multas que podem ir até 20% do salário anual e confisco dos pesos convertíveis depositados na conta poupança em Cuba… A 10 anos de “reabilitação” motivada pela expulsão da missão por falta grave, período durante o trabalhador fica impedido de participar em missões externas. A instrução do processo disciplinar é, também ela, verdadeiramente chocante para os padrões democráticos a que nos habituámos. Estão disponíveis na internet, pelo que nos escusamos a escalpelizar neste espaço. [caption id="attachment_9781" align="alignnone" width="450"] O contrato celebrado em Setembro de 2013 com a médica Ramona Matos Rodriguez, enviada para o Brasil ao abrigo do programa Mais Médicos (ao qual aderiram também alguns clínicos portugueses) foi tornado público após aquela profissional de saúde ter decidido pedir asilo político às autoridades brasileiras por discordar da quantia que lhe era paga por Havana. Na imagem, a médica na câmara dos deputados brasileira, ao lado do deputado Ronaldo Caiado.[/caption]