O exercício da prática médica, quando – e deveria ser sempre! – é assumido com o profissionalismo e com a humanidade que Abel Salazar sempre sublinhou e nos recordou, não só nos gratifica e dignifica, como nos lembra de uma realidade em que vivemos, dura, dissonante e exigente.
Limites ou constrangimentos, sejam de que natureza for, apenas nos impõem um dever ético inabalável para com os nossos doentes, numa relação que não pode ser mera propaganda e precisa de se sedimentar num amplo conhecimento e cumprimento das regras e normas de atuação, na defesa do que se apelida de autonomia técnica e científica, à luz dos princípios de eficiência e complexidade de quem tem de, a cada momento e uns após outros, fazer decisão clínica.
Conviria, por isso, que o Estado – os Estados – não perdesse de vista a necessidade de dar aos médicos em primeiro lugar, e depois a todos os outros profissionais de saúde, o reconhecimento do valor das suas atividades e trabalhos. O que, não sendo original certamente, deverá ser tido em conta como um inequívoco recurso de natureza e formato organizacional.
Vem isto a propósito de um texto assinado pela Dr.ª Ana Ferreira Castro, distinta colega oncologista médica do Centro Hospitalar do Porto que, assinou um artigo de opinião há uns meses atrás no jornal “Porto 24” (julgo que a 8 ou 9 de dezembro de 2016), cujo título era “Investigar é preciso”. A sua abordagem centrava-se em torno da questão da formação médica e da investigação científica e partia de uma primeira evidência clara: a maioria dos ensaios clínicos em Portugal parte da iniciativa da indústria farmacêutica (IF), como se isso pudesse ou constituísse, no limite, algum problema ou pecado.
O seu texto, também de desabafo e de revolta, merece reflexão e permitam-me uma breve citação: “os ditos ensaios académicos, ou seja, aqueles que pretendem responder a questões clínicas do nosso dia a dia, financiado pelas instituições, tornaram-se residuais (cerca de 8%)”.
E não, não é porque não haja perguntas ou teses para desenvolver ou questionar, nem pela falta de estudiosos ou investigadores, mas porque o financiamento, designadamente de quanto o ensaio envolva (tratamentos, exames de diagnóstico, deslocações, seguros, custos logísticos, honorários de investigação, estatística), assume dimensões incomportáveis para as universidades ou as fundações, fora do circuito da IF.
Tal como no Serviço Nacional de Saúde, onde ninguém parece interessado em discutir a sério o financiamento e as suas consequências, a montante e a jusante, também na investigação não se trata do financiamento e assobia-se para o lado e inventam-se portarias, leis e circuitos que complicam, retardam e desanimam os mais “pintados”...
A Medicina tem de assentar na prática clínica.
A situação vivida hoje em dia nos internatos médicos e a observação da vida nas escolas médicas alerta-nos e aflige-nos, com uma produção de médicos a granel, massificante a curtíssimo prazo, pese embora a emigração médica que, de resto, até nos deve encher de orgulho internacionalmente pela imagem de qualidade dos médicos portugueses, formados em Portugal! Não vejo nisso nenhum drama. Harvard, Stanford, Oxford, Cambridge, Sorbonne ou Lovaina, são academias conhecidas e reconhecidas pela qualidade elevadíssima dos jovens que formam, graduam e “exportam” para o mundo.
O que será diferente, e isso sim poderia justificar uma outra discussão ou reflexão, são as razões – as primeiras e as últimas – que levam os nossos especialistas, médicos mas outros também, a deixar Portugal e partir para todo o lado…
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.