Por mais que tentemos, a Saúde persegue-nos, contribuindo em boa medida para os índices assustadores de burnout que afectam os médicos em geral. E diria, em particular, os que desempenham funções no sector público.
A relação médico-doente impõe-nos regras duras em termos éticos e morais, deontológicos e técnico-científicos. Mas essa relação é sempre questionada a partir do tempo que para ela dispomos, partindo do princípio que os sistemas de informação e de comunicação funcionam e estão operacionais…
O tempo para as consultas, em especial nos cuidados primários, esgota-se no atendimento de situações agudas e não programadas, escasseando ou nem existindo capacidade para o desenvolvimento de uma Medicina preventiva que, aliás, parece esquecida pelos decisores, apostados como estão em manter a falta de estratégia para o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Na verdade, isto pode parecer paradoxal.
Tenhamos em conta o que se passava há alguns anos e que definiu, mudou e mudou para as doenças não transmissíveis, implicando uma transformação radical nas causas de incapacidade e de mortalidade.
Assim, de forma aliada ao envelhecimento populacional, o Mundo mais desenvolvido e Portugal, conheceram um aumento brutal no peso das doenças crónicas degenerativas e metabólicas e inflamatórias, que se mantem em crescendo!
Ou seja, com o “fim” das doenças infeciosas, as doenças crónicas acentuaram o peso da procura de cuidados assistenciais e fizeram disparar a pressão sobre os sistemas públicos de saúde.
Ignorar ou não compreender este facto é um disparate.
Desde logo porque isto tem impacto, pelo menos, em duas vertentes.
A primeira, a da noção do teste dos limites. O teste dos limites, quer às capacidades potenciais de resposta dos serviços de saúde do SNS, quer à lógica de cuidados globais, articulados e contínuos que este tipo de doentes vai exigir e obrigar.
Depois, porque o desajustamento observado na oferta ao acréscimo da procura de assistência continuada tem implicado medidas avulsas e reativas, improdutivas e não eficientes, que colocam em risco óbvio a sustentabilidade do sistema e rebentam com as dimensões orçamentais!
Ora o papel dos médicos de família (MF) tem sido muito significativo no diagnóstico precoce das doenças crónicas e das co-morbilidades.
Em todo o caso, o processo de “etiquetagem” dos doentes, que os rotula ou identifica para o resto da vida, constitui como que uma espécie de dupla condenação, a do próprio utente naturalmente e em primeiro lugar, e a do MF, associado para sempre ao momento do anúncio da doença…
Simultaneamente os doentes crónicos vão sofrer maior exposição às complicações e às consequências da evolução das patologias, consumindo igualmente por esta via mais cuidados e atendimentos. E o grosso deles vi ser mesmo seguido, fundamentalmente, pelos MF.
O número de consultas e o tempo dispensado vai ser assim e em boa parte consumido por este leque de utentes, cada vez maior, cada vez com maiores necessidades.
Falta integração de cuidados e a participação de equipas mais alargadas de profissionais clínicos na gestão destes grupos de doentes e os internamentos evitáveis, a redução dos reinternamentos ou os recursos aos serviços de urgência, tornam-se inevitáveis, dispendiosos e em última análise, agravando o risco das populações em causa.
Pensemos, enfim, no último ponto que me ocorre.
O dos utentes mais velhos, muitos dos quais vivendo isolados ou com o apoio de cuidadores, sejam formais ou informais, ou institucionalizados no limite.
Estes são o perfil de utente que, por norma, praticamente só consulta ou recorre ao MF.
Para estes, como para muitos portugueses, o crescimento do sector privado da saúde nada pode oferecer. Os indicadores de saúde precisam de incluir outras dimensões e a dimensão das listas de utentes deve ponderar, mais do que escalões etários, condições e necessidades de saúde.
Os médicos têm muitas razões para se sentir desmotivados. Nem são reconhecidos, nem estimados. Mas, são médicos e como tal não se podem separar dos seus doentes.
Esta será, com certeza, a fundamental razão médica dos médicos!
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.