Nenhum médico contestará que, perante a ineficácia comprovada de um fármaco, a opção pela sua continuidade não induzirá qualquer benefício clínico. Como também todos concordarão que, face a efeitos secundários ou adversos, se pondere a sua rápida descontinuação. E talvez todos concordemos ainda que, em cenário de doentes polimedicados e eventualmente idosos, se avalie da necessidade da indicação e da prescrição.
Falamos até de “cascatas de prescrição” quando nos referimos ao brutal acumular de prescrições que em muitos pacientes caracterizam a vontade de tudo querer tratar e de corresponder a um certo sentimento social, em prol da medicalização que, além de excessiva e dispendiosa, prejudica tantas vezes os indivíduos sob tratamento. Isto associado ao custo direto, constitui fator agravante da complexidade da prescrição global, acentua interações medicamentosas que os clínicos não avaliam devidamente nem preveem, dificulta a adesão terapêutica e, enfim, alerta para a polimedicação e segurança do doente.
De resto, a literatura médica internacional sublinha crescentemente a importância do deprescribing: a suspensão de um medicamento avaliada e decidida por um médico.
Vale a pena perguntar, aqui e agora, se um médico se sente ou não confortável quando, nesta circunstância, se pronuncia pela interrupção ou descontinuação de um fármaco não prescrito por ele próprio?
Em termos éticos, a segurança do nosso doente deve ser o primeiro valor a respeitar e defender.
Numa outra dimensão, pensemos enquanto médicos e cidadãos contribuintes e pagadores de impostos, se acreditamos mesmo que qualquer serviço de saúde, em Portugal ou num outro país, poderá um dia ter recursos financeiros capazes de assegurar a todos os doentes o melhor tratamento possível?
É certo que a evolução tecnológica e científica tem sido fascinante e é procurando e oferecendo soluções e inovação para o diagnóstico e o tratamento – preventivo ou curativo – de uma vastíssima série de patologias (muitas delas genéticas) que, no limite, colocará possibilidades de infindáveis respostas.
E se, como é expetável, as capacidades forem limitadas e não se puderem tratar todas as pessoas? E se, como for plausível, os decisores políticos e financeiros colocarem nos médicos a necessidade de selecionar os indivíduos a salvar?
Ou, caso prefiram, para nos colocarmos no papel de quem dá a cara e a alma nos serviços de saúde, em que medida a tecnologia e o desenvolvimento não induzem nos familiares e nos doentes a noção de que podemos gerir e oferecer tratamento e soluções para todo e qualquer problema de saúde, estruturando a desconfiança e a agressividade contra os clínicos quando a morte é o que fecha o ciclo da vida?
O aumento dos custos e da despesa global em saúde está em tendência e é uma realidade de espiral imparável, quando associado ao envelhecimento.
É inequívoco que a prática sufocante do quotidiano a corresponder à procura de cuidados não nos deixa muito tempo para pensar, ainda por cima quando o Ministério da Saúde opta por perturbar o clima normal de trabalho e por não reconhecer quem garante o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Há sempre limitações em tudo. Pensemos, por exemplo, nas questões energéticas, nas reservas mundiais de água e nas alterações climáticas em curso, nas maiores necessidades alimentares e no aumento das assimetrias e dos problemas associados às migrações.
Então no plano financeiro e na saúde poderá ser diferente?
Poderá ser-nos exigido que, como médicos, nos compitam ou incumbam de escolhas entre a vida de alguns e a vida de muitos?
Qual é realmente o valor de uma vida humana?
E que recursos terá o SNS para salvar vidas?
Ninguém tem respostas, nem agora, nem definitivas.
E será tremendamente estúpido enfiar a cabeça sob a areia, evitando ver o que nos rodeia e onde vivemos.
Mas, vale a pena pensar ético, sempre.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.