Pandemia de COVID-19 ou a revisitação da história mundial

O processo nacional de planeamento para a pandemia de gripe que sobreveio em 2009 foi iniciado, em 2005-2006, em contexto pós-crise da epidemia de SARS de 2002-2003 (“pneumonia atípica”) e de crise pela gripe A(H5N1) ou “gripe aviária”. Implicou a recolha da evidência disponível e teve, nos relatos históricos da gripe pandémica de 1918, o referencial para o pior cenário (worst case).

Estes relatos foram tanto mais relevantes quanto a evidência, relativamente à efetividade das medidas de saúde pública, era escassa ou, mesmo, inexistente. Retenho imagens fotográficas, que ainda hoje exibo, com fins didáticos ou de docência, que achava impossíveis de repetição: camaratas com centenas de doentes alinhados, alternando cabeça com pés, por forma a garantir o distanciamento de contacto e, em simultâneo, otimizar o espaço disponível.

Mas a imagem que mais me marcou, da “pneumónica” ou “gripe espanhola”, são os rostos, parcialmente cobertos por máscaras cirúrgicas, espelhando incredulidade ou, mesmo, pânico genuíno…

A pandemia de COVID-19 iniciou-se em finais do ano transato, na China. A sua progressão tem sido semelhante a uma avalanche, em que os sinais antecipatórios são escassos e o tempo de preparação é diminuto.

Não permitiu, a nenhum país do Mundo, a necessária preparação; em muitos casos, houve, apenas, a organização de um simulacro de resposta. Quanto ao planeamento - prévio à preparação - foi impossível.

Mas falar em preparação pandémica não é sinónimo de afetar os meios suficientes para “apagar o incêndio”; trata-se de mobilizar, dentro do possível, recursos para mitigar os seus efeitos devastadores. Nenhum país está preparado para uma catástrofe com a magnitude e impacte de uma pandemia, uma vez que mantida durante meses ou anos.

O dia-a-dia de muitas cidades europeias relembra o da 2ª Guerra Mundial: sirenes ululantes, apelando ao recolher dos civis, ruas desertas e o olhar receoso dos cidadãos, espreitando de cada janela, perante o novo dia que se inicia, depois de mais uma noite de bombardeamentos… E cada dia que nasce traz o terror de novas baixas, civis e militares…

Os relatos de profissionais de saúde, italianos e espanhóis, são arrepiantes, pela dimensão do desastre humanitário. Desastre semelhante ao que nós, placidamente, observamos, através da televisão, em países do chamado terceiro mundo…

Nenhuma “bola de cristal”, por mais sofisticado que seja o modelo matemático em que se baseia, permite prever o dia (?) do pico de uma epidemia, nem tão pouco as suas consequências.

Mas é, igualmente, verdade que quanto maior o investimento prévio em meios e recursos, menos destrutivo será o “embate” no “edifício” dos sistemas de saúde. No caso concreto do nosso País, no Serviço Nacional de Saúde. Um edifício que não sofreu as reparações necessárias mais facilmente colapsará perante uma tempestade violenta…

Rever o plano de contingência da gripe pandémica, elaborado em 2007, é, para mim, como rever um guião de um filme de terror que nunca julguei possível de ver passado à tela. Tela que nos é dada pela pandemia de COVID-19 e pela forma como ameaça os próprios pilares da civilização humana.

A resposta apropriada à pandemia de COVID-19 pressupõe uma resposta organizada e solidária, a um nível global. Solidariedade que está longe de ser uma palavra vã, ou não dependesse dela a mitigação de uma das maiores ameaças de sempre da História da Humanidade. É-o por ser uma ameaça à própria Humanidade…

Pressupõe, ainda, proteger os mais vulneráveis. Mas a proteção de todos assenta na proteção daqueles que são os soldados na frente de batalha: os profissionais de saúde. Há, pois, que garantir, por todos os meios e custe o que custar, os equipamentos de proteção individual indispensáveis à sua heroica atividade assistencial.

Há, no entanto, razões para um otimismo contido, comparativamente com um passado que julgávamos remoto. As tecnologias permitem comunicar, a uma escala global e em tempo real, dados e conhecimento científico e epidemiológico; por outro lado, os recursos e meios, designadamente os hospitalares, são incomensuravelmente superiores aos de 1918.

Mas, acima de tudo, temos profissionais de saúde de altíssima qualidade e com um espírito de serviço sobre-humano, que nos fazem ter esperança quanto ao desfecho desta tragédia global. Se o nosso País lhe conseguir passar relativamente incólume, isso dever-se-á aos seus profissionais de saúde.

Não estamos perante o fim do Mundo mas estamos, com toda a certeza, perante o início de um novo Mundo. Mundo que perceciona, com há um século não o fazia, a vulnerabilidade à doença infeciosa.

A solidariedade, entre indivíduos e nações, terá, pois, que ser a nova palavra de ordem.

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.