Assinalamos o 41.º aniversário da criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Marco civilizacional da história quase milenar do nosso País, o SNS resultou de um verdadeiro movimento de saúde pública, cujas origens remontam a 1970-72.
Portugal exibia, nos anos 40 do século passado, indicadores de saúde compatíveis com os de países da Europa Central e do Norte em finais do século XIX. Em 1960, uma criança nascida no nosso país tinha uma probabilidade de morrer, antes de alcançar o primeiro ano de vida, cinco vezes superior à de uma criança nascida na Suécia…
Reconhecia o Governo, em 1970, que Portugal se tinha atrasado na “vigilância da saúde e na prestação de cuidados”, relativamente aos restantes países da Europa. Decidiu, então, lançar as bases, tendo em vista o seu alargamento progressivo à totalidade da população, de um “Sistema Nacional de Saúde”, através da “definição duma política nacional de saúde, que considerasse o direito à saúde de todo o cidadão (…) tendo uma tradução prática pela possibilidade real de utilizar os meios” (F. Gonçalves Ferreira, 1972).
Desta forma, em abril de 1974, Portugal já dispunha de uma rede de centros de saúde (de “primeira geração”), na qual se veio a enxertar a rede de cuidados primários do SNS. Nas palavras de Francisco Gonçalves Ferreira, Secretário de Estado da Saúde e Assistência de 15/01/1970 a 31/01/1972, “o primeiro nível de serviços é assegurado por equipas de saúde que trabalham na comunidade, em contacto direto com a população (…) em ligação direta com a unidade-base (centro de saúde) de que dependem”.
O SNS teve como fator precipitante da sua constituição o despacho, de 29 de julho de 1978, do então Ministro dos Assuntos Sociais, António Arnaut. Foi criado a 15 de setembro de 1979, ao abrigo de uma Lei da Assembleia da República (Lei nº 56/79), no contexto de um governo presidido por uma independente (Maria de Lurdes Pintasilgo). É, portanto, fruto da Democracia – quer na sua génese, quer nos seus propósitos.
Baseando-se em cuidados universais, gerais e tendencialmente gratuitos, o SNS assenta num planeamento de base populacional, visando a satisfação, integral, das reais necessidades em serviços de saúde da população (“prestações de saúde”), sem prejuízo do ajustamento da sua resposta aos recursos disponíveis (sustentabilidade).
Do ponto de vista da organização de serviços, podemos identificar três marcos na história dos serviços de saúde em Portugal dos últimos 50 anos: a reforma Gonçalves Ferreira (1970-72); a criação do SNS (1979); e a vigente reforma Correia de Campos (2005-2009).
A reforma Correia de Campos do SNS, além de ter reconfigurado a rede de cuidados de saúde primários em agrupamentos de centros de saúde (ACES) e de ter constituído a rede nacional de urgência e emergência, criou, em 2006, um novo nível de cuidados (cuidados continuados integrados), presentemente organizado em duas redes.
Desde então, o SNS teve, como primeiro “embate” global, a pandemia de gripe que sobreveio em 2009 – embate, esse, facilmente ultrapassado, face ao atempado planeamento e preparação (remontando a 2005) e, primariamente, ao curso benigno da pandemia. Realidade bem diferente daquela que vivemos, a nível nacional e global, na sequência da emergência do SARS-CoV-2.
A pandemia de Covid-19 fez o mundo tremer de medo perante uma doença, como já não acontecia desde 1918. Cenários que julgávamos impossíveis, face aos desenvolvimentos tecnológicos da saúde, tornaram-se realidade e a sociedade foi paralisada nas suas atividades de relação social e económica.
Os sistemas de saúde do século XXI têm, nas doenças crónicas não transmissíveis, o seu maior desafio. Mas, fruto da globalização ambiental e societal, traduzida pelo aumento das oportunidades de contacto agente-hospedeiro e hospedeiro-hospedeiro e, também, das resistências aos antimicrobianos, as doenças infeciosas reemergiram como problema de saúde global (i.e., comum à generalidade dos países).
O modelo organizacional e de cuidados vigente é assente na programação, micro ou meso sistémica, de atividades de âmbito clínico-individual (“patient-centered”), mediante um processo de contratualização, naturalmente não passível de contemplar acontecimentos imprevisíveis a uma escala populacional. A intervenção é primariamente centrada no indivíduo, concorrendo, secundaria e prospetivamente, para os ganhos em saúde (objetivo populacional).
Um sistema de saúde responsivo tem como caraterística-chave a plasticidade da sua resposta. Tal implica, em contexto de ameaça populacional, um paradigma organizacional e de cuidados centrado na comunidade (“community-centered”): a comunidade/população torna-se o objeto primário da intervenção, sendo o objetivo a proteção, reflexa ou “retrospetiva”, da saúde dos seus membros individuais.
Importa, pois, integrar, nos sistemas e serviços de saúde, uma dimensão de contingência – qual apólice de seguro, que se espera nunca vir a ser acionada, mas cujo pagamento se quer em dia.
O planeamento de contingência em saúde pública visa mitigar as consequências de fenómenos imprevisíveis e com elevado impacte potencial em saúde. Contempla a redistribuição de recursos e de meios, no limite da sua disponibilidade. Integra, do ponto de vista instrumental, a comunicação do risco e, do ponto de vista dos meios e dos recursos, os restantes setores da sociedade.
Pressupõe um sistema de serviços de saúde capaz de detetar a mudança e de se lhe adaptar na sua resposta (“preparedness and response”). E, desde logo, serviços operativos de saúde pública dotados dos recursos e do posicionamento sistémico necessários ao cumprimento da sua função de vigilância epidemiológica e da sua missão de proteção da saúde.
Seguir-se-ão, à pandemia em curso, outras ameaças, igualmente imprevisíveis e de âmbito populacional. Para que não sobrevenham as “mágoas na lembrança” do poeta, há que antecipar o futuro epidemiológico, garantido o presente assistencial.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.