Lúcio Meneses de Almeida: "Ainda o SNS: Que rumo e que futuro? A propósito das USF-C"
DATA
01/02/2023 09:15:15
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Jornal Médico
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Lúcio Meneses de Almeida: "Ainda o SNS: Que rumo e que futuro? A propósito das USF-C"

Leia a crónica de Lúcio Meneses de Almeida, médico Assistente Graduado de Saúde Pública e presidente do Conselho Nacional de Ecologia e Promoção da Saúde da Ordem dos Médicos, acerca do futuro do SNS. Saiba mais na próxima edição, edição 139, do Jornal Médico. 

Recentemente, o Ministro da Saúde anunciou o modelo C das unidades de saúde familiar (USF) como uma possibilidade material. Esclareça-se que esta tipologia organizacional está prevista desde 2007, por força do despacho n.º 24101/2007, de 22 de outubro.

As unidades de medicina geral e familiar (MGF), da rede de cuidados primários, contemplam dois modelos organizacionais: as USF e as unidades de cuidados de saúde personalizados (UCSP), suas precursoras. 

O modelo das USF é assente no pagamento baseado no desempenho. Contratualizado junto das respetivas equipas autoconstituídas, inclui 3 tipologias: “modelo A” (USF-A), detentor de incentivos pecuniários institucionais; “modelo B” (USF-B), caraterizado por incentivos pecuniários individuais (majoração salarial); e o “modelo C” (USF-C), experimental e carecendo, à data, de regulamentação.

O “modelo C” visa suprir necessidades não satisfeitas pelas entidades do SNS da rede de cuidados primários. Prevê, nessa medida, que os setores social, cooperativo e privado se organizem de forma a prestar cuidados de saúde a uma determinada população de utentes. 

Não obstante defensor do SNS, sou desprovido de preconceitos quanto à participação do setor não público na organização e funcionamento do sistema de saúde português. Tanto mais que os setores privado e social têm um relevante papel na satisfação das necessidades assistenciais da população portuguesa.

Mas defender uma organização não é impô-la; é, antes, dar-lhe as condições para que possa florescer. 

Importará salientar que a criação do SNS, em 1979, foi um verdadeiro avanço civilizacional. Pela primeira vez na nossa história multissecular, o acesso a cuidados de saúde deixou de depender do rendimento individual e a doença de ser uma punição financeira sobre os economicamente mais vulneráveis.

Decorridos 43 anos, sopram ventos ameaçadores. Prevalece o desalento angustiante por parte dos que nele resilientemente permanecem.

Este retrato, trágico na sua essência, resulta de políticas negligentes que, por consequência, são catalisadoras da desmotivação. Ora, não restem dúvidas aos decisores políticos de que o SNS se encontra alicerçado na motivação dos seus profissionais…

A eventual criação de USF-C configura uma “fuga para a frente”. Ao invés do reforço do SNS, são abertas as “portas” a parceiros que, até ao momento, navegavam organizacionalmente nos cuidados hospitalares e nos continuados. 

Uma grelha salarial condigna com a exigência e diferenciação profissional e a possibilidade do acesso, por parte da totalidade dos seus profissionais de saúde, ao estatuto remuneratório praticado no âmbito das USF-B, são medidas que, uma vez implementadas, iriam reforçar estruturalmente o SNS. Além de estancar a “hemorragia” de médicos e de outros profissionais de saúde, permitiriam corrigir uma grave iniquidade remuneratória.

É certo que a MGF é, desde há vários anos, praticada em contexto hospitalar privado. E é, igualmente, verdade que o acesso aos cuidados de saúde, em contexto de doença aguda, se faz primordialmente através da rede hospitalar (serviços de urgência). 

Mas convirá não esquecer que as “portas” que as USF-C irão abrir são as portas de entrada do sistema. A falar-se em “privatização” do SNS, será uma privatização pela base do seu edifício organizacional…

Ou a possibilidade aventada pelo titular da Saúde - em sede de audição parlamentar de novembro de 2022 - é uma afirmação inconsequente ou, em alternativa, traduz um novo rumo político, revelador da assunção da falência do SNS. 

Em qualquer um dos casos, o futuro é motivo de preocupação…

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.