Rui Cernadas: outra vez os Cuidados Primários?
DATA
02/02/2023 16:27:01
AUTOR
Jornal Médico
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Rui Cernadas: outra vez os Cuidados Primários?

Leia a crónica da edição 138 do Jornal Médico, com a habitual colaboração de Rui Cernadas, especialista em Medicina Geral e Familiar (MGF), acerca dos Cuidados de Saúde Primários (CSP).

É verdade que saltamos para o Novo Ano e que por regra as pessoas formulam, nesta altura, desejos e promessas que raramente assumem e muito menos cumprem.

Poderá ser isso que de certo modo aconteceu com o recente anúncio do Ministério da Saúde e a surpreendente notícia de que, em Janeiro de 2023, serão criadas mais 28 Unidades de Saúde Familiar (USF) de modelo B.

Os meios de comunicação social registaram e divulgaram ainda que com tal criação "30 mil cidadãos” passarão a ter um médico assistente nos centros de saúde…

O povo português sabemos ser um povo de crentes.

Alguns meios políticos e sociais, aliás, sempre explicaram os fenómenos religiosos ou similares exactamente sob este argumento. 

Os profissionais em serviço nos Cuidados Primários de Saúde (CSP) devem estar cansados de serem jogados ou utilizados como instrumentos de discurso político.

E os utentes do SNS fartos de não terem atribuído o médico e enfermeiro de família a que teriam direito constitucional.

Vale a pena detalhar dois ou três aspectos associados às tais notícias de final de ano sobre Cuidados Primários.

Primeiro, foi dito e anunciado que cerca de dúzia e meia das “novas USF” situam-se na região de Lisboa e Vale do Tejo.

No território desta ARS há cerca de um milhão de pessoas sem médico de família atribuído!

Ora o público não percebe e os jornalistas generalistas mal preparados também não, mas as USF modelo B serão somente USF já existentes, a funcionar em modelo A, e que são promovidas – espero eu – na base de validação de resultados obtidos em anos anteriores. Não são contratados novos médicos, novos enfermeiros ou novos assistentes técnicos!

Ou seja, na prática nada de novo vai surgir salvo que, o pessoal dessas USF passa a beneficiar também de um sistema de incentivo ao trabalho das suas equipas!

Segundo, andam a brincar com os CSP. 

As USF de modelo B são, nos termos do que se designou de Reforma dos CSP, constituídas livre e voluntariamente por equipas de médicos, enfermeiros e secretários clínicos, contratualizando carteiras de serviços e apostando em modelos de funcionamento vocacionado para os utentes e suas famílias, com regras e planos de actividades e objectivos exigentes.

Ora se a legislação estivesse a ser cumprida de facto, comprometendo os profissionais na escolha dos colegas e validando tal decisão em assembleia geral, não seria possível verificar o sucessivo lançamento de concursos públicos para admissão de médicos de família destinados a USF modelo B!

E por outro lado, os CSP sempre compreenderam que o modelo de criação de USF visava gerar uma curva permanente de melhoria de prestação assistencial e um certo espírito concorrencial que, em última análise, só beneficiaria as populações servidas.

Daí os modelos A e B, como forma dinâmica de promoções e despromoções, ainda que com um objectivo final a prazo e tolerado pelo Ministério das Finanças de acomodação de uma maior despesa em recursos humanos, remunerações e incentivos!

Terceiro e último ponto, os CSP ficaram esquecidos e perdidos com a Pandemia. 

Mas os jovens especialistas não estão a deixar as vagas em aberto por mero acaso, não asseguram a substituição dos colegas reformados por teimosia, nem estão disponíveis para aceitar incentivos para as regiões mais carenciadas por capricho e enfim, não abandonam o SNS por nenhuma genética subjacente.

A tutela bicéfala do SNS precisa de reflectir e trabalhar sobre esta questão. 

Pela parte dos CSP estou convicto de que a ausência de estratégia global para o futuro das USF, a falta de uma direcção técnica e clínica efectiva que apostasse no desenvolvimento e qualificação das unidades e o reconhecimento continuado do seu trabalho explica a falência do projecto e a fuga dos jovens especialistas para o privado… e para o estrangeiro.

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.