Leia o artigo de opinião da autoria de Marta Rainho, médica Interna em MGF na USF Luísa Todi, ACES Arrábida, ARSLVT, e Mafalda Caetano Neves, médica Interna em MGF na USF do Castelo, ACES Arrábida, ARSLVT, a propósito da experiência de ambas no trabalho que desenvolveram no Centro de Saúde do Nordeste, nos Açores, durante o terceiro ano de formação em Medicina Geral e Familiar (MGF).
“Nordeste, “a 10.ª ilha” dos Açores”… Esta foi uma das primeiras frases que ouvimos quando chegámos a Ponta Delgada e que, percebemos mais tarde, acaba por retratar a perceção que alguns habitantes têm desse concelho, dada a distância em relação aos pontos mais centrais da ilha de São Miguel.
Durante o 3.º ano da nossa formação em Medicina Geral e Familiar (MGF), um dos meses é realizado numa Unidade de Cuidados Primários à nossa escolha, com o objetivo de contactarmos com uma população de características diferentes da nossa unidade de colocação, em centros com outros modelos organizacionais. Com tudo isto em mente, conseguimos que a nossa Formação fosse aceite no Centro de Saúde de Nordeste.
O Nordeste é um concelho no extremo leste de São Miguel, formado por nove freguesias: Salga até Nordeste (inclui a Pedreira), e conta com cerca de 4373 habitantes1,2. A área geográfica estende-se por 101,51 km², com zonas habitacionais que acabam por estar bastante isoladas, sem uma rede de transportes públicos eficaz.
Já o Centro de Saúde de Nordeste (CSN), que se localiza na Vila de Nordeste, serve toda essa população, dividindo-se numa Unidade de Ambulatório, Unidade Básica de Urgência (UBU) e Unidade de Cuidados Continuados. A nossa formação decorreu sobretudo no Ambulatório, formada neste momento por uma equipa de quatro médicos, seis enfermeiros e três assistentes técnicos. O CSN também conta com uma especialista em Medicina Dentária, uma Nutricionista e três Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica (Radiologia, Eletrocardiografia e Fisioterapia).
A prestação de cuidados a grupos vulneráveis, nomeadamente na área da Saúde da Mulher, conta com o apoio de uma Enfermeira Especialista.
A atividade que desenvolvemos foi direcionada maioritariamente para consultas programadas. Aqui a população com que contactámos era tipicamente rural, com muitas pessoas em idade ativa dedicadas à agricultura, criação de gado e serviços, mas acima de tudo com uma população residente bastante envelhecida. Verificámos uma baixa literacia em saúde, dificuldade na gestão de polimedicação e esquemas posológicos mais complexos e ainda dificuldade na implementação/aceitação de uma medicina mais preventiva.
Algumas particularidades foram surpreendentes para nós: a alta prevalência de consumidores de tabaco e bebidas alcoólicas, de obesidade em adultos mas também crianças/jovens, e ainda de patologia psiquiátrica, maioritariamente síndromes depressivos (o isolamento social terá certamente um papel importante).
Fomos progressivamente sentindo maior autonomia na gestão de doentes complexos, em alguns casos com as suas patologias crónicas bastante descompensadas e também maior capacidade na interpretação de exames complementares de diagnóstico (ECDs). Durante a nossa passagem testemunhámos também a aposta na formação médica, com vários eventos dinamizados pelos serviços de especialidades hospitalares ou pelos médicos internos em MGF da ilha.
Alguns aspetos que na nossa opinião merecem destaque devido ao impacto negativo que acabam por ter na prestação de cuidados:
- Impossibilidade de acesso à informação clínica do hospital de referência;
- Recursos humanos escassos e sobrecarga da equipa médica na manutenção da UBU;
- Ausência de resposta em áreas essenciais como a Psicologia e Serviço Social no CSN;
- Alguns ECDs disponíveis apenas em Ponta Delgada (exceções: radiografia, ECG e análises);
- Ausência de convenção/acesso a ECDs básicos como espirometria ou colonoscopia total;
- Burocracias inerentes à prescrição de ECDs convencionados (necessidade de múltiplas vinhetas, assinaturas, carimbos…).
No entanto, salientamos também alguns dos aspetos muito positivos que encontrámos:
- Disponibilidade de radiografia e eletrocardiografia no CSN (possibilitam rápidos diagnósticos e evitam deslocações);
- UBU que responde às necessidades da população, com rápida articulação com o hospital de referência e também com outros ECDs disponíveis, como testes rápidos para marcadores cardíacos e D-Dímeros;
- Manutenção de cozinha e lavandaria para resposta ao ambulatório e internamento;
- Grande entreajuda entre profissionais;
- Presença de uma pessoa dedicada à resolução de problemas informáticos;
- Boa relação com a população, em geral cordial e respeitosa.
Os profissionais do CSN prestam assim cuidados de excelência e, tendo em conta a distância a que se encontra o hospital de referência, têm um papel fundamental na resposta às situações urgentes através da UBU.
Só nos resta agradecer, em especial à doutora Gabriela Amaral, que nos recebeu e desde o primeiro dia nos fez sentir “como em casa”, e igualmente reconhecer o apoio de todos os médicos e profissionais que partilharam o seu conhecimento connosco e que nos fizeram sentir também como parte da equipa!
Acreditamos que este “mês fora da unidade de colocação” é uma etapa essencial no nosso percurso formativo e que nos tornará certamente melhores Médicas de Família.
Bibliografia:
1. Principais Resultados Preliminares - Censos 2021. Julho 2021. Instituto Nacional de Estatística (INE), Serviço Regional de Estatística dos Açores (SREA) e Autarquias Locais.
2. CMNordeste [Internet]. Nordeste: Câmara Municipal de Nordeste; 2022 [Acesso em 10/12/2022]. Disponível em https://cmnordeste.pt/municipio/juntas-de-freguesia/.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.