A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde. Efetivamente, não só se tem passado à população em geral a ideia enganosa de que o aumento da acessibilidade aos CSP confere maior qualidade ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), como ainda lhe é “vendida” a noção irreal de que os CSP têm capacidade para absorver e responder rapidamente a todos os casos de patologia aguda não urgente. Por outro lado, têm-se pressionado intensivamente os Médicos de Família a trabalharem cada vez mais, sob condições de trabalho cada vez menos adequadas, e a diminuírem a quantidade de consultas de patologias crónicas estabilizadas, e de prevenção, para aumentarem a quantidade (não a qualidade) da resposta dada à doença aguda. Ora, não é preciso muito para se perceber o impacto maleficente que isto terá a médio e longo prazo, quer para os utentes, quer para os Médicos de Família, quer para o SNS. De facto, não é à toa que, nos últimos anos, tem-se percecionado um aumento do número de diagnósticos de doenças oncológicas a serem detetadas cada vez mais tarde e em estádios evolutivos já avançados; um aumento geral do número de descompensações de doenças crónicas; e elevados custos do SNS com estas situações. Não obstante, esta situação impõe ainda uma insatisfação dos utentes com o SNS, que manifestam o seu desagrado de forma cada vez menos respeitosa e agressiva com os diversos profissionais de saúde, e uma insatisfação por parte dos profissionais de saúde com a quantidade e intensidade desumana de trabalho diário, colocando-os em burnout, potenciando o erro médico, e aumentando o absentismo laboral, trazendo consequentemente ainda mais custos ao País. De salientar que no SNS, o seguimento de doentes crónico estabilizados, a realização de consultas de vigilância/prevenção, e de avaliação familiar são apenas realizadas pela especialidade médica de Medicina Geral e Familiar (MGF), sendo que a orientação de patologia aguda (urgente ou não urgente) pode ser realizada por qualquer médico (especialista ou não especialista). Assim sendo, será de colocar outros médicos, que não de MGF, a realizar consultas de doença aguda nos CSP e libertar os Médicos de Família para terem tempo de realizar aquilo que só eles fazem e para a qual se prepararam durante anos. Não quero com isto dizer que os Médicos de Família deixem de fazer consulta aguda. Apenas considero que ela não pode ser o seu foco de trabalho. É absolutamente desanimador, ao fim de 11 anos de formação intensiva, em que 4 deles são na especialidade de MGF, verificar as condições de trabalho progressivamente decadentes, que o SNS tem a oferecer. Não é, pois, de admirar que exista uma parte, cada vez maior, dos especialistas em MGF que preferem abandonar o SNS e exercer funções no privado, ou até mesmo mudar de profissão. Efetivamente, cada vez se pede mais e se dá menos a quem muito já faz, desvalorizando as dimensões pessoal, familiar e social dos Médicos de Família. Continuando assim as coisas, não ficaria nada admirada se daqui a pouco tempo, em vez de se discutir estratégias de fixação dos recém-especialistas em MGF, se estejam a debater estratégias para cativar médicos recém-licenciados a escolherem esta especialidade. É, assim, essencial que a nossa governação seja resiliente e compreenda que a mudança do paradigma é necessária. O segredo para elevar os CSP passa pelo investimento forte e assertivo, financeiro e não financeiro, nos seus profissionais de saúde e respetivas condições de trabalho. Sem isso, caminhamos apenas para compor retalhos que irão despedaçar-se ao primeiro puxão.