É quase esquizofrénico no mesmo mês em que se discute a carência de Médicos de Família no SNS empurrar, por decreto, os doentes que recorrem aos Serviços de Urgência (SU) hospitalares para os Centros de Saúde. A resolução do problema das urgências em Portugal passa necessariamente pelo repensar do sistema, do acesso e de formas inteligentes e eficientes de garantir os cuidados na medida e tempo de quem deles necessita. Os Cuidados de Saúde Primários têm aqui, naturalmente, um papel fundamental. Assistimos diariamente a situações de sobrelotação destes serviços ou até fecho dos mesmos, por carência de profissionais e aos frequentes relatos de exaustão dos que lá trabalham. O que faltará, porventura, ilustrar é a sobrecarga diária de milhares de médicos de família com pedidos que excedem a capacidade definida de consulta e tantas vezes respondidos em desrespeito pelos Tempos Padrão para consultas da especialidade de Medicina Geral e Familiar, recomendados pela Ordem dos Médicos. O retrato de qualquer bom serviço de saúde é nos dado pela sua sala de espera. No caso, o SU representa uma entrada livre com garantia de atendimento a todo o momento. É consensual que devem estar reservados para todas as situações realmente urgentes em que a demora no atendimento acarreta consequências inaceitáveis. Consenso este que resulta, implicitamente, da noção de finitude dos recursos. Estamos, assim, perante um problema que se afigura económico, e se quisermos simplificar, de desequilíbrio entre oferta e procura. São muitos os fatores que contribuem para este, que se vêm arrastando, e cujas consequências têm vindo progressivamente a acentuar-se. Se nos lembrarmos, a questão dos serviços de urgência é ciclicamente objeto de discussão especialmente no Inverno de forma generalizada e no verão naqueles locais em há um grande aumento populacional em virtude dos veraneantes. Ora, havendo variação de procura perante uma oferta fixa é natural que isso aconteça. O que assistimos agora é a um excesso de procura relativamente a uma oferta, também ela reduzida, em muitos casos, pela dificuldade em captar profissionais. Esta realidade não é exclusiva das urgências hospitalares, mas verifica-se também nos Cuidados de Saúde Primários. Se atentarmos no lado da oferta de serviços importa, desde logo, reforçar e adequar a dotação das equipas de forma a que sejam também capazes de assegurar o nível do serviço em cada momento. Há que ter também noção que os CSP asseguram 55-60% das consultas de urgência no País (dados do BI-CSP para o Continente 20220-2022), ainda que tenham graves carências de recursos humanos já por demais enunciadas. A captação de especialistas para o SNS é fundamental para inverter esta espiral negativa de condições (lido num sentido alargado a incluir todos os determinantes de fixação de profissionais) inapropriadas de local de trabalho que levam à saída de profissionais e subsequente agravamento de condições com sobrecarga dos que ficam. Nos CSP, sem o aumento de profissionais será impossível aumentar a resposta não apenas às situações agudas, mas a tudo o que é pedido ao Médico de Família. O que temos assistido é, pelo contrário, à saída de muitos recém–especialistas do SNS. Para se ter uma ideia, o número total de Especialistas em Medicina Geral e Familiar (Pordata) é de perto de 8200, em 2021, contudo, apenas cerca de 5500 exercem funções em USF ou UCSP (dados do BI-CSP, 2022). Um outro ponto, por demais importante, mas que tem sido pouco abordado diz respeito à ação necessária sobre a procura, imprescindível para garantir que o SNS presta os cuidados de saúde no nível desejado a quem deles necessita. Quem trabalha em Cuidados de Saúde Primários sabe, por exemplo, que a impossibilidade de programação de consulta a curto prazo conduz a uma sobreutilização da consulta no próprio dia (habitualmente reservada para situações agudas). Ora, isto verificar-se-á em todos os níveis de cuidados, em que há falta de profissionais ou que estes sejam alocados ao SU com perda na resposta programada. Ademais, a limitação no acesso durante um período de dois anos com redução do número de consultas e acompanhamento de doentes crónicos tem as suas consequências. Acresce ainda , o efeito direto da pandemia no aumento da procura, que tem como exemplo paradigmático a necessidade de contacto com o SNS para a realização de testes para identificação da infeção e isolamento de casos, mas que não se esgota nesta. No entanto, há que realçar, também, o impacto sobre a perceção da necessidade de observação médica perante situações de doença. Assistimos a campanhas que promoveram o recurso a cuidados de saúde perante sinais e sintomas que outrora eram geridos pelo próprio no domicílio. Quem atende diariamente situações agudas percebe um recurso excessivo dos serviços perante situações que não necessitam de avaliação de cuidados de saúde, mas que acontece, de forma esperada, numa sociedade que conviveu diariamente nos últimos anos com informação médica e alertas vários e promoção da utilização dos mesmos perante qualquer mínimo sintoma. A abolição das taxas moderadoras poderá também ser outro fator não despiciente no aumento desta procura. Há que repensar a comunicação e promover estratégias para identificar e clarificar as situações que carecem realmente de observação das demais. A atuação neste sistema para garantir a resposta no momento apropriado e no nível de serviço adequado será necessariamente complexa. Porém a perseguição de elevados níveis de “eficiência” e a valorização de indicadores desta pode ter um efeito muito pernicioso em Saúde. A eficiência do sistema, em saúde, especialmente num sistema público não poderá ser medida em “produção/profissional” ou “produção/tempo de trabalho” (produção no sentido de número de atendimentos/respostas). Simplesmente porque em Saúde o importante são os ganhos alcançados no estado de saúde e esse não tem uma relação linear com o tempo despendido, mas antes depende de condições humanas e de qualidade dos cuidados prestados que escaparão a métricas simplistas aplicadas na Gestão. Importa, pois, criar as condições de dignidade e qualidade em todos os níveis de serviço de forma a que a resposta dada seja a adequada para cada situação de Saúde. E se é verdade que na maioria das situações agudas a resposta deve ser dada pelas equipas de saúde familiar, é fundamental criar mecanismos que definam e qualifiquem a resposta. Estas, passam necessariamente por atuar também sobre a procura, pois os recursos são, por natureza, finitos e os cuidados de saúde primários não podem simplesmente empurrar para outros.